quarta-feira, 25 de abril de 2018

Um Pouco de Mim (5)

Tentando Viver de Música


No final dos anos 80, saí do apartamento em que vivi com meus pais para morar sozinha. Bancar uma casa, por menor que seja, é uma árdua tarefa e apenas cantar em orquestra não me permitiria esta nova empreitada, pois é um tipo de trabalho muito sazonal, inconstante e eu precisaria ter uma renda mais estável. No entanto, não poderia ter um emprego noturno por causa de minha Faculdade à noite. Sim, nos anos 80 e 90, a noite do Rio de Janeiro ainda possuía uma enorme variedade de boates, bares, restaurantes... Muitos com música ao vivo e músicos contratados com carteira assinada. Eram empregos formais e, ganhando bem ou não, o músico profissional tinha um salário e os benefícios da lei.

É curioso pensar nisto. Quando comparo o mercado de trabalho daquela época com o atual, sinto muita tristeza e lamento por todos nós que vivemos de música. A violência nas cidades e o desenvolvimento da tecnologia talvez tenham sido os maiores responsáveis pela quase extinção dos postos de trabalho. Um DJ, sozinho, faz a festa e cobra às vezes quase o mesmo cachê que uma banda de pequeno ou médio porte. As orquestras, coitadas, não têm a menor chance de competir por causa de seu gigantismo. Pense no custo de passagens, alimentação, hospedagem e cachê para uma banda com vinte e cinco, trinta, ou até mais, pessoas. Quando vemos um grupo no palco, tenha a certeza de que há um outro nos bastidores, trabalhando firme para que o show aconteça: são os roadies, camareiros, motoristas, técnicos de som, de luz... É um verdadeiro exército que não aparece, mas existe e entra na planilha de cálculo dos custos de uma banda.

Moro no Rio de Janeiro e é o mercado que melhor conheço.  Não tenho notícias de casas que, hoje em dia, empreguem músicos como no passado: são trabalhos de, no máximo, uma ou duas vezes por semana, por um cachê ou couvert (muitas casas ainda pedem um percentual sobre o couvert). A violência urbana prejudica o músico, direta e indiretamente, quando afasta os frequentadores da noite e ainda o expõe aos constantes assaltos. O mercado está praticamente restrito a gigs1, acompanhamento em shows de artistas e musicais – no entanto, devido à crise pela qual passa o país, os orçamentos das produções estão mais enxutos.

Voltando ao final dos anos 80, por causa de meu novo projeto de vida e da impossibilidade de trabalhar à noite, decidi procurar um emprego diurno mesmo. Como ainda não havia concluído meu curso superior, não tinha muitas opções e acabei trabalhando como secretária em expediente integral, saindo da empresa direto para a Faculdade e, nos fins-de-semana, estudando, fazendo supermercado e cuidando da casa.     
  
Era cansativo, mas, pior do que isto, era chato! Eu detestava aquele tipo de trabalho!!! Minha alma musical reclamava o tempo todo, porém era sempre soterrada pelas contas do mês... Mas eu tinha de extravasar a minha musicalidade de alguma forma e voltei às aulas de canto no único horário em que podia - às 6:30h da manhã, meu professor e eu abríamos o Conservatório, três vezes por semana. Nestes dias, acordava às 5:30h da manhã e, é claro, estava sempre com sono, não rendendo nada. Não aguentei e tive de parar com estas aulas.

Fui levando e, finalmente em 1990, consegui um excelente emprego em uma multinacional, ainda como secretária, no departamento que cuidava de patrocínio a eventos culturais. Já havia me conformado com a ideia de abandonar a música, concluir meu curso de Jornalismo e fazer carreira na empresa em que estava, mas o destino tinha outros planos.

Comecei na empresa no mesmo dia em que o ex-Presidente Fernando Collor de Mello assumiu. Fui a última contratação antes que o novo plano econômico fosse anunciado, dias depois, pela então Ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. O “Plano Collor”, na realidade, poderia ser resumido em apenas três palavras: confisco da poupança. E de todos os brasileiros, pessoas físicas e jurídicas! Foi um quebra-quebra geral de várias empresas – principalmente as menores. A minha era grande, com sede nos EUA, e mesmo assim foi atingida o suficiente para demitir 20% de seu quadro de funcionários e congelar, pelo menos até segunda ordem, todos os projetos e patrocínios. É claro que eu estava na lista. Antes de demitir, a empresa ainda esperou uns três meses para ver se o país reagia, mas não deu. Com o Brasil parado, ficava difícil arranjar outro emprego e acabei voltando para a orquestra de minha família. Porém alguma coisa em mim havia mudado.

Eu queria cantar, sempre quis, no entanto os bailes já não estavam mais me satisfazendo profissionalmente: eram os mesmos lugares, o mesmo repertório, os mesmos arranjos... Eu estava querendo conhecer outras formas de ver e viver a música. Acabei por sair da nossa banda e passei por outras orquestras, fiz algumas apresentações em casas noturnas e me dediquei a fazer uma fita demo para enviar às gravadoras e a estúdios de jingles.

Naquela época, a internet ainda estava engatinhando no mundo e, no Brasil, mal se falava disto. Nossa moeda ainda era o combalido e desvalorizado Cruzeiro e um computador custava uma fortuna! Só víamos estas máquinas maravilhosas em empresas.

A forma mais comum de mostrar um trabalho era gravando uma fita K7 demo, com umas três músicas, e mandando para gravadoras e produtores. Havia o custo do estúdio e dos músicos, mas tive a imensa sorte de, nesta busca por novos caminhos, conhecer o tecladista da cantora Rosana “Como uma Deusa”, o Wagner, que era um dos poucos músicos que possuíam em casa um equipamento que poderia ser usado em gravações também.

Wagner era antenado, me deu umas dicas ótimas e se ofereceu para gravar duas músicas. Ainda tivemos o auxílio luxuosíssimo do baterista de nosso querido “Tremendão” Erasmo Carlos - o Carlos Jorge. Ele foi o primeiro a tocar uma bateria eletrônica, novinha em folha, na minha frente. Fiquei maluca. Era muita novidade de uma vez só.

Hoje em dia, ninguém mais faz fitas demo para enviar às gravadoras. A internet mudou dramaticamente a relação do músico com o mercado e qualquer pessoa pode ter um razoável home studio com pouco investimento, fazer suas gravações em casa, postar na internet, vender seu trabalho em plataforma digital e até fazer CDs para vender em apresentações. Há vários sites gratuitos onde artistas desconhecidos podem mostrar seu trabalho, fazendo um perfil com currículo, fotos, agenda e suas músicas. O problema é que, se por um lado a internet democratizou e barateou a produção musical, por outro, aumentou demais o número de aspirantes à fama e separar o joio do trigo se tornou uma tarefa hercúlea. São milhões de artistas, por todo o mundo, a tentar um lugar ao sol. Alguns, ótimos. Outros, nem tanto... Voltando aos 90, com minha fita demo em punho, fui à luta. No próximo post, conto o desfecho surpreendente desta cruzada.

1 Gig é um termo usado por músicos para indicar uma apresentação (normalmente de pop, rock ou jazz) que não tem a pretensão de ser um show ou baile. Por exemplo, quando você vê aquele rapaz ou dupla tocando em um restaurante ou barzinho por umas três, quatro horas e com alguns intervalos, é uma gig.



Neste vídeo, uma linda música de nosso Tremendão: Minha Superstar (Roberto - Erasmo), ao vivo. 


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