quarta-feira, 25 de abril de 2018

Um Pouco de Mim (3)

O que é Vocação?


Viver de música no Brasil é uma tarefa hercúlea. E não foi mais fácil para mim só porque nasci em uma família de músicos. Nada disto. Costumo dizer que não adianta ter talento se não há vocação, seja na música, na medicina, no comércio ou em qualquer outra área. E você só descobre se tem vocação depois que passa por certas coisas.

Cerca de dois anos após a morte de meu pai, em 1982, nossa família montou a Orquestra Waldir Calmon com alguns músicos que haviam trabalhado em seu conjunto. Ele raramente fazia bailes com a orquestra, usando esta formação, na maioria das vezes, em gravações de discos. Minha mãe, cantora quando solteira, ficou à frente do projeto e se tornou a, digamos, primeira bandleader do sexo feminino de que já ouvi falar.

Quando os homens veem uma mulher jovem, bonita e inexperiente comandando um negócio que pode gerar bons lucros, é complicado. E não foi diferente com minha mãe. Eram muitos palpites infelizes, propostas indecentes e oportunistas de plantão, mas, aos trancos e barrancos, conseguimos levar a pequena orquestra adiante.

No segundo semestre de 1984, estreei na banda como “estagiária”, com um repertório limitadíssimo e sem ganhar um tostão. Pouco tempo depois, comecei a receber um pequeno cachê. Éramos duas cantoras e meia – eu (que estava lá somente para aprender), minha mãe e uma outra, veterana, que vamos chamar aqui pelo fictício nome de Maria. Pois bem, o marido de Maria (vamos chamá-lo de João) se auto-intitulava empresário e, com sua lábia envolvente, convenceu minha mãe a dar-lhe exclusividade nas vendas de bailes. Hoje em dia, vejo como foi ingênua, pois ele não apresentou uma prova sequer, nem um simples recorte de jornal, que comprovasse a sua atuação como empresário.

Em novembro de 1984, perguntei à minha mãe se havia algum trabalho agendado para o dia doze de janeiro, sábado, pois eu queria comprar um ingresso para o primeiro Rock in Rio e, comprando com antecedência, tínhamos um ótimo desconto.

- Mãe, tem certeza de que não tem baile no dia doze de janeiro? É um sábado.
- Tenho. 
- Então vou comprar o ingresso. Tem mesmo certeza?
- Tenho. Pode comprar.

E lá fui eu, feliz da vida porque iria assistir, em um único dia, Al Jarreau, James Taylor, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Ivan Lins e George Benson - que havia gravado, há pouco tempo, Dinorá Dinorá (Lins – Martins). Eu estava em êxtase!
Lá pelo dia três de janeiro, João, o maior empresário do Brasil, marcou um baile para o dia doze de janeiro... Justamente no dia doze!!! Gelei. Ele e Maria foram lá em casa combinar os detalhes. Estranhei, pois não vi contrato, orçamentos para transporte, nada. Apenas uma data em uma folha de papel. Mas estagiária não pode dar opinião...

- Não vou. Já comprei meu ingresso para o Rock in Rio.
E João, o maior empresário do Brasil retrucou:
- Você tem  que ir!
- Mas não faço falta. Só canto umas três músicas.
-  Você é uma mulher bonita e fica bem à frente da orquestra.

Nesta altura, eu já não sabia se chorava ou pulava no pescoço dele. Mas tentei argumentar civilizadamente:

- Isto não faz a menor diferença para o trabalho. Além do mais, perguntei à minha mãe antes de comprar o ingresso.

Indiretamente, eu queria lembrá-lo de quem mandava realmente ali. Mas João, o maior empresário do Brasil, foi irredutível:

- Se você não for ao baile, sai da banda.

Olhei para minha mãe, afinal era ela que administrava aquilo tudo, e nada. Parecia não entender que, quando lhe perguntei se poderia comprar o ingresso, estava falando com a gestora e não com a mãe.

Quando os dois foram embora, já sem argumentos, resolvi apelar para seu lado materno. Quem sabe teria mais sorte?

- Mãe, eu perguntei antes de comprar e você concordou. Você não pode permitir isto. Sou sua filha.
- Márcia, você é um membro da orquestra como outro qualquer!

Desisti. Não havia mais como convencê-la. Trabalhar com família é difícil e as coisas frequentemente se confundem. Fiquei tão triste que nem quis vender o tíquete para o Rock in Rio. Quis me desfazer dele logo e dei para o meu irmão – mesmo sabendo que seria o único dia desinteressante para um roqueiro. Pop-jazz não era sua praia.

- Toma. Faz o que quiser com ele.
- Legal! Vou vender para recuperar uma parte do dinheiro que gastei.

E vendeu. Para o melhor amigo - e sem desconto. O telefone tocou. Era a vítima:

- Márcia, se era para dar o ingresso, por que não deu para mim ou vendeu por um preço menor? Eu já ia comprar mesmo. 
- Poxa, desculpe. Fiquei com pena do Marcus. Ele gastou muito dinheiro comprando tantos ingressos... Sabe como é, né? Irmão...  

Minha nossa! Aquilo estava parecendo um filme de terror daqueles bem ruins do Ed Wood!

Chegou o dia doze! Não havia transporte especial para os músicos e João, o maior empresário do Brasil, comprou passagens em ônibus de carreira para toda a banda. O trabalho era em Rio Bonito, cidade que fica a cerca de apenas 70 km do centro do Rio de Janeiro. Nunca entendi por que não deram o dinheiro da gasolina para que os próprios músicos se dividissem em alguns carros, pois não era tão longe assim. Mas estagiária não dá opinião...

O baile começou. Casa vazia!!! Como os próprios músicos dizem, tocamos para a família Madeira: mesas e cadeiras - o trabalho havia sido fechado com pouquíssima antecedência e não houve tempo para fazer a divulgação. Mesmo assim, a orquestra se apresentou normalmente e foi um alívio quando acabou, pois nada pior do que tocar para ninguém ou quase ninguém. E eu só lembrava de que poderia estar me divertindo muito, naquele exato momento, com meus amigos em um inesquecível show...

Quando acabou, João, o maior empresário do Brasil, recebeu um cheque da contratante. Músicos não gostavam desta forma de pagamento, pois geralmente só recebiam seus cachês depois da compensação do cheque. Também não houve, como é de praxe, 50% de adiantamento que, em caso de calote, cobririam despesas básicas, como transporte, som, alimentação etc... Para completar, só haveria ônibus, na pequena rodoviária de Rio Bonito, umas três horas depois. Ficamos vagando pela cidade, em uma desagradável e quente madrugada de verão, sem rumo, e não achamos um lugarzinho sequer para sentar e tomar uma água. Tudo fechado. Chegando ao Rio, pegamos um taxi e o motorista, todo animado, começou:

- Souberam do Rock in Rio ontem?
- O que aconteceu, moço? 
- Foi uma loucura! Os shows arrebentaram! Na hora do James Taylor, cantaram e acenderam os isqueiros. Foi lindo! George Benson e Ivan Lins cantaram juntos! Todo mundo só fala disto!

Senti uma lágrima escorrendo, discreta, pelo meu rosto. Assim que cheguei em casa, liguei para meu amigo (a vítima que comprou o ingresso de meu irmão, sem desconto):

- E aí? Como foi? 
- Maravilhoso! Só faltou você!

E começou a contar. Liguei para outro amigo, do meu grupo da antiga escola:

- E aí? Como foi?
- Maravilhoso! Só faltou você!

Todo mundo que eu conhecia, com exceção de meu irmão, foi ao festival no dia doze! Nunca imaginei que pudessem caber tantos sentimentos distintos e confusos, ao mesmo tempo, dentro de uma quase cantora. Depois do prejuízo material, de não conseguir assistir a meus ídolos em uma oportunidade única, de levar uma bronca do amigo, de tocar para uma casa vazia, de vagar por uma cidade deserta, o que mais poderia me acontecer?

- O cheque não tem fundos.
- O quê???!!! Como não tem fundos???!!! E o contrato? Quando você fechou o trabalho não tomou precauções?

Não. João, o maior empresário do Brasil, não pediu nenhuma garantia e ficou por isto mesmo. Minha mãe pagou os músicos com o dinheiro do suado capital de giro da orquestra.

- Mãe, quero o meu cachê.

Eu ganhava pouco, mas era meu e já ajudaria a minimizar o meu prejuízo material, ora.

- Como? Você vai me cobrar? Você é minha filha! 
- Ué? Eu não sou um membro da orquestra como outro qualquer?
- Que absurdo! A Maria e o João não me cobraram!
- Mas é claro! Ele foi o irresponsável por isto tudo! E ela é mulher dele! Eles até deveriam ajudar a orquestra a pagar os músicos!

E não recebi. Foi o único trabalho que João, o maior picareta do Brasil, fechou. ÚNICO!

É. Acho que vocação é quando a profissão que você escolheu mostra logo o seu lado mais sombrio e, mesmo assim, você continua a amá-la...



No vídeo, uma das músicas que eu cantava na Orquestra Waldir Calmon na época do baile em Rio Bonito: Nada Mais (Stevie Wonder - Ronaldo Bastos). Infelizmente, não tenho nenhum registro gravado, mas os deixo com a maravilhosa voz de Gal Costa, ao vivo, no ano 2000.

2 comentários:

  1. - Querida e talentosa Márcia Calmon, que experiência (dolorosa) para uma jovem, não é? Mas, como você mesma reconhece foi um eficientíssimo teste vocacional, e que não poderia permitir dúvidas nunca mais, sobre a futura profissão escolhida de cantora popular.. Afinal, uma moça tão bonita como você, poderia ter sido modelo, manequim, atriz, apresentadora de TV, miss (e depois, se casar com um milionário), mas, não... Você escolheu ser esta cantora afinada, versátil e criativa, que a gente gosta tanto! Abraços! Paulo Ventura (Niterói).

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    1. Paulo, você sempre com sua sensibilidade e bom senso! E foram muitas as oportunidades que a vida me deu para que eu escolhesse outros caminhos... Grande beijo, meus queridos!

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