domingo, 7 de abril de 2013

Parabéns, Tranka!

Aniversário de um dos Mais Geniais Músicos que Conheço


Abril é o mês de aniversário de uma das pessoas mais talentosas que a nossa música já conheceu. Quero fazer uma justa homenagem a este que só nós, músicos e cantores, conhecemos.

Tranka nasceu Tancredo e, ao contrário do que muitos pensam, o seu apelido não tem nenhuma relação com o nome de batismo. Ainda criança, sofreu um sério acidente em uma porteira e, a partir daí, quando lhe perguntavam o motivo de todos aqueles machucados, ele respondia “a tranca”! Muitos tempo depois, a cantora Marlene, com quem trabalhou por mais de trinta anos, sugeriu que trocasse o c pelo k para ficar, digamos, mais artístico...

Tranka nasceu em Valença, interior do estado do Rio de Janeiro, e aprendeu música com seu tio, maestro da banda da cidade, e seu primeiro instrumento foi a requinta. Aos dezenove anos, veio para a capital tentar a vida como músico. Mesmo com todas as dificuldades que uma cidade grande oferece a um rapaz do interior, conseguiu fazer ótimos contatos graças ao seu imenso talento e acabou ganhando o mundo: em 1976, fez uma turnê com o cantor caribenho-norte-americano Harry Belafonte e morou em vários países – sempre tocando e/ou ensinando música.

Em 1978, o sucesso da novela Pai Herói (TV Globo) trouxe de volta um estilo de casa noturna que há tempos estava decadente: as gafieiras. Na estória, a personagem de Glória Menezes era a feliz proprietária da gafieira Flor-de-Lis e a repercussão do folhetim foi tão grande que a Flor-de-Lis saiu da ficção e foi para o bairro de São Conrado, no Rio, sob a batuta do competentíssimo maestro Cipó. Muitas outras surgiram pelo Rio de Janeiro e um grupo de empresários, aproveitando o boom, decidiu abrir uma outra gafieira na cidade, no Leblon, bairro nobre da zona sul carioca. Tranka foi chamado para conhecer o espaço e avaliar a possibilidade de montar a nova casa dançante, com orquestra e tudo mais. Mas ele sugeriu outra coisa: ao invés de um lugar que, com o fim da novela, estaria fadado ao esquecimento, por que não fazer uma casa de espetáculos folclóricos brasileiros com muito luxo e estrutura grandiosa? E assim nasceu o Plataforma. Sim, aquele Plataforma que também tinha uma churrascaria, na parte de baixo, onde o inesquecível maestro Tom Jobim passava a maioria de suas tardes e onde Tranka o conheceu, tornando-se amigos. A concepção da casa de espetáculos foi do Tranka, com aquela imensa passarela, e todos os shows tiveram a sua assinatura. A gafieira Flor-de-Lis acabou praticamente junto com a novela e o Plataforma permaneceu por décadas no mesmo lugar...

Tranka havia conhecido um dos futuros donos do Plataforma, Alberico Campana, na noite carioca. Aliás, na noite conheceu muita gente boa: Alcione, Emílio Santiago, Djavan, Ivan Lins, Luizinho Eça, Luiz Carlos Vinhas, dentre tantos. Quase todos ainda desconhecidos, em começo de carreira. Ele morava em um famoso apartamento, no Posto Seis de Copacabana, que ficava com as portas abertas o tempo todo. Segundo o próprio, era uma “verdadeira bagunça”, mas recebia quem precisasse de um lugar para dormir. Passaram por lá Celinho Trompete, Wagner Tiso, Milton Nascimento, o guitarrista Írio de Paula e outros mais.

Nesta época, também conheceu Marlene (a maior!): ela estava procurando um grupo novo para acompanhá-la no show Te Pego Pela Palavra quando conheceu o Relax na boate Number One, em Ipanema: Eduardo Prates (piano), Toninho Costa (guitarra), Tranka (baixo), Chiquinho Brasão (bateria) e Suely, Zaida e Octávio César (vocais). Marlene ficou encantada com os modernos arranjos e contratou-os. Bem, o fim desta história todos conhecem - o show, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, foi um enorme sucesso e é considerado um dos melhores de todos os tempos. E Tranka acabou se tornando o maestro oficial de Marlene.

Aqui, faço um aparte. Tranka começou tocando requinta, passou pelo clarinete e foi ao sax e à flauta. Daí, partiu para o baixo (que tocava quando conheceu Marlene) e, não satisfeito, foi para o violão, o teclado e para o piano (sim, há uma pequena diferença chamada “mão esquerda” que requer muito mais estudo na transição dos teclados arranjadores para o piano acústico). Com Harry Belafonte tocou guitarra; com Gonzaguinha, baixo; com Emílio Santiago, sax e flauta... E os baixistas mais consagrados dizem que poucos dominaram este instrumento como Tranka. Acredito, pois nunca conheci ninguém tão versátil e com tamanha musicalidade. As harmonias que cria são de um bom gosto extremo e poucas vezes vi alguém com tamanha capacidade para criá-las. E, quem é do ramo, sabe que harmonia musical é um assunto espinhoso... Os arranjos que escreve também são lindos e é impressionante a sua rapidez. Como se não bastasse, é capaz de reconhecer acordes sem o apoio de nenhum instrumento, só pelo ouvido. Quando presenciei isto, na primeira vez, pensei que estivesse brincando conosco. Estávamos com alguns jovens franceses na ilha de Saint Martin (Caribe), onde moramos, e ele ouviu uma música e começou a escrever sua harmonia na hora, apenas com o auxílio de uma caneta e um papel. Todos nos entreolhamos, surpresos. Parecia que estávamos assistindo a um show de David Copperfield. Agora já me acostumei.

Porém, nada disto parece suficiente e Tranka ainda compõe. Pois é. Foi gravado pela primeira vez, em 1978, pela cantora Celeste em seu disco Cinco e Triste da Manhã: Ronda Tristeza (Tranka) e Sinal de Solidão (Tranka - Jenny). Mais tarde, fez uma parceria bem sucedida com Toninho Nascimento e Noca da Portela, compondo sucessos como Celular, Ilumina e Muambeiro, entre outras.

Mas não poderia acabar este post sem contar uma história muito curiosa, envolvendo meu pai, o pianista Waldir Calmon, e Tranka - um grande talento, mas desligado de tudo. Sua cabeça vive em outra dimensão e é difícil fazê-lo prestar atenção aos assuntos corriqueiros. Já meu pai era um homem extremamente rígido no que dizia respeito ao trabalho.

Pouco tempo depois de chegar à capital, meu pai o convidou para tocar sax em um baile na Tijuca, na rua Barão de Ubá. Tranka não entendeu direito, mas tem (até hoje) o péssimo hábito de não perguntar nada a ninguém e tentar resolver tudo sozinho. Como não conhecia bem a cidade, confundiu Barão de Ubá com Bangu e seguiu rumo à zona norte. Para quem não conhece, os bairros Tijuca e Bangu são muito, mas muito distantes um do outro. Para piorar, chovia. Chovia como se o mundo fosse acabar e Tranka pegou o ônibus, com seu instrumento, para Bangu. Quando chegou em Bangu, viu o erro e, lembrando-se do nome correto da rua, finalmente pediu uma informação. Pegou outro ônibus, debaixo do temporal, e seguiu para a Tijuca. Depois deste nada agradável passeio turístico pelo Rio, conseguiu chegar ao clube, encharcado e já na metade do baile. Pensou que poderia chegar discretamente, montar o seu instrumento e “atacar” como se nada houvesse acontecido. Mas, na hora de montar o sax, percebeu que havia esquecido a boquilha e falou a um músico - discretamente e na esperança de não chamar a atenção de Waldir Calmon - que iria buscar em casa, rapidinho, a peça que faltava. Concluindo a história: meu pai, na mesma hora, mandou pagar-lhe o cachê com a condição de que fosse embora naquele momento e nunca mais voltasse. E assim aconteceu. Depois, tornaram-se amigos e ficavam conversando pelas madrugadas naqueles infindáveis papos de músicos quando saíam de seus trabalhos e acabavam todos se encontrando. Chegaram a trabalhar juntos uma única vez, no extinto Canecão (Botafogo, RJ), onde Waldir Calmon tocava todas as noites, antes e depois dos shows. Tranka, que nesta época já havia trocado o sax pelo baixo, substituiu um dos músicos da banda e, segundo ele, foi um sucesso.

Tranka, espero que faça muitos outros aniversários, pois a música precisa de pessoas transbordantes de talento como você! Parabéns pela pessoa e pelo músico que você é!

Abaixo, um vídeo com a dupla Marcia Calmon & Tranka, interpretando Pedacinhos do Céu, de Waldir Azevedo. Há mais vídeos nossos no YouTube: Canal de Marcia Calmon no YouTube


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Emílio Santiago

Alguém Como Tu

Emílio Santiago

O jornalista Xexéo definiu, com muita propriedade, a morte de Emílio Santiago. Em seu texto, disse que “a música brasileira ficou menos elegante.” E ficou mesmo. Emílio era gentil no trato pessoal, um profissional sério e o melhor intérprete de sua geração. Tornou-se uma referência para os cantores da noite e ter a “voz parecida com a do Emílio Santiago” era um elogio. Todos forçavam os graves para timbrar como os dele, claros e afinados. Sua voz potente e aveludada tinha o destaque de seu perfeito groove (também conhecido como suingue, balanço, divisão, ritmo...), interpretação sem exageros e boa extensão. Ele possuía todas as ferramentas para tornar-se um grande intérprete. E tornou-se.

Meu marido, Tranka, e o então crooner Emílio trabalharam juntos na extinta boate 706, no Leblon (Rio de Janeiro), no início da década de 70. Nos anos 80, já consagrado, Emílio o convidou para tocar sax e flauta em uma temporada de shows. O tempo de convivência fez nascer um carinho mútuo que sempre se manifestava quando se encontravam. Um carinho extensivo a todos que compartilhavam o palco com ele. Creio que todos os músicos devem estar sentindo profundamente a perda de um artista tão cordial, amigo e correto. Um ser humano elegante.
Ouça: Emílio Santiago - Alguém Como Tu




Trecho histórico (primeira parte) do programa Flávio Cavalcanti, exibido pela TV Rio, em 1973, nas noites de domingo. O vídeo mostra um quadro do programa que se chamava Isso Deu Samba? no qual se apresentavam dois compositores que recebiam o desafio de compor, em poucos minutos, um samba sobre um tema que lhes era apresentado na hora. Aqui temos a participação de dois monstros da música brasileira: Adelino Moreira e Lupcínio Rodrigues. Nesta gravação histórica, Emílio Santiago ainda não era famoso e aparece interpretando o samba de Lupcínio.

domingo, 17 de março de 2013

A Era das Big Bands - Parte I


Neste post, falarei das big bands e, para melhor compreensão, decidi dividi-lo em três partes: a origem nos EUA, o sucesso e a decadência no Brasil.

A Origem nos EUA

Glenn Miller e sua big band

As big bands foram grandes bandas jazzísticas do séc XX que surgiram com a Era do Swing do jazz (anos 20 até o fim da Segunda Grande Guerra). Nasceram nos EUA e, a partir de meados dos anos 40, chegaram ao Brasil. Estas bandas costumavam ter cerca de vinte músicos ou mais: além da cozinha (piano, guitarra, baixo¹ e bateria), também tinham naipes de palhetas (saxofones altos, tenores e barítonos e, eventualmente, clarinete) e metais (trompetes e trombones) e todos eram conduzidos por um bandleader – que, na maioria das vezes, também escrevia os arranjos. Aqui no Brasil, o termo bandleader, em uma livre tradução, passou a ser conhecido como maestro.

Para entendermos a importância das big bands, precisamos falar das origens do jazz – estilo que nasceu da fusão entre a música europeia e a levada pelos escravos negros, mantendo boa parte dos elementos rítmicos e de improvisação da música africana. Ele surgiu em Nova Orleans, sul dos EUA, no início do século XX e tem dois pilares fundamentais: o ragtime e o blues. Em seus primórdios, o jazz era popular, alegre e feito para dançar.

Após a abolição da escravatura nos EUA (oficialmente em 1865), foram criados os Black Codes (leis para restringir os direitos dos negros) que, entre outras coisas, proibiam os tambores - na época da escravidão, já eram proibidos por alguns fazendeiros, temendo o seu uso como uma possível forma de comunicação entre os negros em caso de revolta generalizada. Os afro-americanos, então, criaram uma nova forma de tocar os instrumentos “brancos”, como o piano, com muito ritmo, quase como se estivessem tocando as suas percussões. Surgia o ragtime.

O ragtime, música popular dos salões de baile do sul dos EUA, era uma marcha com acompanhamento polifônico, feito com outra mão ou um segundo pianista, em ritmo tipicamente africano. Era executado pelos negros e mestiços (creoles) que conseguiram ter uma educação musical formal, técnica e teórica. Aqueles que não podiam pagar para aprender música ficavam com o blues - evolução do spirituals que surgiu nas igrejas segregadas dos negros. O blues também criou a característica blue note: adaptação na escala diatônica tradicional que diminui em meio tom as notas do terceiro e do quinto grau.

Mesmo libertos, os negros ainda sofriam forte discriminação e, segundo os Black Codes, podiam trabalhar apenas em algumas áreas, como, por exemplo, na música. Um pianista negro não era aceito em salas de concertos, mas poderia tocar em igrejas, bares, clubes ou bordéis.

Com uma colonização francesa e católica (a região foi comprada de Napoleão em 1803), Nova Orleans se diferenciava do resto protestante dos EUA com seus festivais de rua, música em velórios e a comemoração do Carnaval onde bandas marciais eram muito usadas. Nestas ocasiões, os adeptos do blues e do ragtime se encontravam e, enquanto alguns liam a partitura, os que não sabiam ler música tentavam se adequar a qualquer custo. Nascia o improviso - uma das características fundamentais do jazz. É importante dizer que, durante a escravidão, os negros eram encorajados a cantar, pois mercadores e donos de escravos acreditavam que a música e a dança os deixavam em melhor forma.

Na Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana (1861-1865), lutaram cerca de 180 mil negros que, durante o convívio militar, tiveram íntimo contato com as músicas marciais. Muitos aprenderam a tocar os instrumentos típicos das bandas: clarinetes, trombones, cornetas etc... Após o fim da guerra, os afro-americanos ficaram com os instrumentos velhos e avariados que o exército havia abandonado ou vendido a preço de ocasião. Talvez isto explique a grande profusão de sopros nas big bands e no jazz em geral.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) abriu caminho para a divulgação do jazz principalmente por duas razões. Em primeiro lugar, os músicos do exército norte-americano apresentaram o novo som à Europa (palco do conflito). Em segundo lugar, os EUA abriram uma base militar em Nova Orleans e, de acordo com os regulamentos do exército, os prostíbulos tiveram de fechar. Isso fez com que muitos músicos, desempregados, mudassem para Nova Iorque e também para a próspera e industrializada Chicago em busca de novas oportunidades de trabalho. Chicago acabou se tornando a nova capital do jazz.

Aproveitando o habitual clima de euforia pós-guerra, o jazz cresceu e se popularizou pelo mundo através das grandes bandas de swing. Nos anos 20, as big bands já eram um sucesso e, nos anos 30 e 40, tornaram-se a grande expressão do mercado musical norte-americano, levando enorme público a suas apresentações. As big bands eram baseadas em arranjos musicais que tanto podiam ser escritos como memorizados, “de ouvido”, já que muitos músicos de jazz não liam partituras. Estes arranjos tinham “janelas” com vários compassos dedicados aos improvisos individuais, dando liberdade criativa ao músico e proporcionando shows aos dançarinos. Uma forma de libertar o espírito que o negro, historicamente oprimido, havia criado. Este período ficou conhecido como a Era do Swing: dançante, vibrante, diferente, fora dos padrões tradicionais de até então. Uma das mais importantes orquestras foi a de Benny Goodman que, em uma atitude inovadora, formou a primeira big band mista (composta por músicos brancos e negros). Antes, as bandas eram compostas apenas por músicos brancos ou negros.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entretanto, trouxe várias mudanças a um cenário que antes beneficiara as grandes orquestras populares: muitos músicos foram convocados para lutar ou, até mesmo, tocar no front e os custos das turnês, em solo norte-americano, tornaram-se quase proibitivos em época de esforço econômico dedicado totalmente à guerra. Um dos problemas era o racionamento de borracha e gás que dificultava o deslocamento de grupos numerosos e de seu equipamento, obrigando os músicos a viajarem em trens sempre lotados de soldados. Apagões e toques de recolher também prejudicavam os clubes e salões de dança e os instrumentos musicais deixaram de ser fabricados durante algum tempo. Além disto, o swing já estava se desgastando e o público parecia preferir as baladas românticas, que também faziam parte do repertório das big bands, interpretadas por crooners² como Frank Sinatra (como resistir a seu timbre aveludado?). Há também três outros fatos que podem ter contribuído para a decadência da Era do Swing nos EUA: nos relacionamentos, o baby boom; nos estúdios, a greve de 1942, e, nas apresentações ao vivo, a criação de uma taxa de entretenimento, em 1944.

Após o final da guerra, houve um aumento significativo da taxa de natalidade em vários países. O retorno dos soldados e a crença em dias melhores no mundo foi uma das causas do baby boom. Nos EUA, mais especificamente, também havia casais que, desde a Grande Depressão, estavam adiando os planos de terem filhos e aproveitaram o período de grande desenvolvimento econômico pelo qual passou o país, após 1945, oferecendo linhas de crédito para veteranos de guerra e amplo mercado de trabalho. Alguns acreditam que o baby boom possa ter afastado o público dos bailes, porque pais de crianças pequenas têm outras prioridades além de dançar.

Em 1942, o sindicato dos músicos norte-americanos promoveu uma greve por causa de questões relacionadas ao pagamento dos royalties das gravações e todos cruzaram os braços, recusando-se terminantemente a gravar. Isto levou a uma abertura do mercado fonográfico para os cantores, pois não eram sindicalizados. As gravações deste período costumavam ser acompanhadas por coros e as gravadoras tiveram que relançar discos antigos para sobreviver enquanto as big bands se mantinham bem longe dos estúdios e sem novos sucessos... A greve só acabou mesmo em 1944 e o episódio ficou conhecido como The 1942 Recording Ban.

Em 1944, entrou em vigor nos EUA um novo e curioso imposto de guerra que aumentava em 20% a conta de todos os frequentadores de locais que mantinham música para dança e/ou cantada! Clubes que forneciam música estritamente instrumental e que não fosse para dança estavam isentos. Se alguém se levantasse para dançar, 20% a mais seriam cobrados; se alguém cantasse, mais 20%... O percentual caiu para 10% em 1960 e somente acabou em 1965. Historiadores acreditam que este imposto estimulou o surgimento de um estilo que ia, deliberadamente, contra todas as regras da boa música dançante: o bebop. Bem diferente das big bands, o bebop era uma nova e contemplativa forma de jazz, instrumental, não dançante, com grupos menores, longos improvisos, pouquíssimos arranjos, grande sofisticação harmônica e complexidade rítmica, elitizando um estilo que, em sua origem, era popular.

Historiadores também afirmam que o desaparecimento do importante bandleader e trombonista Glenn Miller, em 15 de dezembro de 1944, marcaria o fim da Era do Swing e das big bands nos EUA. Depois da Segunda Grande Guerra, somente alguns poucos conseguiriam manter suas orquestras, a duras penas, como Duke Ellington e Count Basie. A partir daí, o jazz evoluiu para o bebop e deixou de ser dançante.

O fim da Segunda Guerra trouxe um novo cenário político e econômico internacional: enquanto o continente europeu, devastado, começava a sua reconstrução, os EUA despontavam como nação próspera – o país dobrou o seu parque industrial durante os anos de guerra – e nova potência mundial, substituindo a França como referência cultural brasileira.  Neste contexto, a moda das grandes orquestras de baile chega ao Brasil e, no próximo post, falaremos da euforia pós-guerra e de alguns grandes músicos e maestros, como Portinho (clarinete), Severino Araújo (clarinete), Waldir Calmon (piano) e Radamés Gnatalli, entre outros.

¹ Algumas formações tinham, ao invés do baixo e da guitarra, tuba e banjo.

² Como eram conhecidos os cantores das big bands.



Na foto, Glenn Miller e sua bigband. O vídeo mostra a orquestra de Glenn Miller sob a regência de Tex Beneke, em 1946, tocando o clássico In The Mood (Joe Garland e Andy Razaf). Tex Beneke era cantor e saxofonista e trabalhou com Miller. Após o desaparecimento do bandleader, Tex conseguiu uma autorização dos herdeiros para prosseguir com a orquestra e o fez até 1950. Note as "janelas" no arranjo para os improvisos dos músicos, a pulsação da música para dança e o tamanho da banda com naipes de metais e palhetas e cozinha. Nesta época, Tex reproduziu a formação que Miller usava quando se apresentava com a orquestra nas frentes de batalha, adicionando um naipe de cordas. Mas a crítica recebeu mal esta inovação em solo americano e ele voltou à formação original, sem cordas.
Fontes:


A Era das Big Bands - Parte II


O Sucesso no Brasil

Orquestra Tabajaras com Severino Araújo

Com o término da Segunda Grande Guerra, em 1945, a euforia tomou conta dos países aliados e os anos subsequentes resgataram a exuberância e o luxo perdidos durante o sangrento conflito. Havia um amplo espírito de esperança, apesar de a bipolarização do mundo entre EUA e URSS - ou melhor, entre capitalismo e comunismo - continuar gerando tensões que, por vezes, colocaram o planeta à beira de um colapso nuclear. Este período, que durou cerca de cinquenta anos, ficou conhecido como Guerra Fria. O Brasil optou por alinhar-se aos EUA, passando a adotá-lo como nova referência cultural.

Os Estados Unidos propagavam pelo mundo uma nova forma de viver, o american way of life, através principalmente de suas indústrias fonográfica e cinematográfica: moda, carros, eletrodomésticos... Tudo resumia o novo estilo de vida pós-guerra, festejando o triunfo da modernidade aliado aos já tradicionais valores burgueses. Se, durante a Segunda Guerra, as mulheres foram praticamente obrigadas a se lançar no mercado de trabalho, porque os homens estavam nos campos de batalha, nos anos 50 viveu-se o “conforto pós-guerra”, havendo um retrocesso deste comportamento com sua volta ao clássico papel de mãe, dona-de-casa e esposa. Os fortes valores morais da década de 50 também dificultavam o convívio entre os jovens, pois não havia diálogo franco sobre sexo, os colégios mistos eram raros e a severa vigilância dos pais inibia o contato entre rapazes e moças, gerando muita curiosidade e expectativa. Nos eventos sociais, esta juventude reprimida podia se aproximar e interagir.

Politicamente, o fim da guerra também marcou o fim de quinze anos de ditadura Vargas no Brasil, mas Getúlio Vargas voltou à presidência em 51, através de eleições diretas, e suicidou-se em 54, “deixando a vida para entrar na História”, como escreveu em sua carta-testamento. A instabilidade política que se seguiu foi intensa, porém breve. Em 31 de janeiro de 1956, assumia Juscelino Kubitschek que encarnou todo o otimismo do final da guerra e trouxe um desenvolvimento rápido através de seu Plano de Metas (50 anos em 5), abrindo a economia brasileira ao capital estrangeiro e construindo uma cidade inteira no, até então inexplorado, Planalto Central. O período de seu governo foi chamado anos dourados e ele recebeu o modernoso apelido de presidente bossa-nova.
   Do ponto de vista econômico, a Segunda Grande Guerra nos trouxe alguns benefícios e o País conseguiu acumular expressivo volume de reservas cambiais, havendo uma real melhoria no padrão de vida do brasileiro. A boa economia, o desejo de recuperar o conforto que lhes havia sido tirado durante o esforço de guerra e os costumes sociais da época fizeram eclodir uma demanda reprimida de consumo. A própria moda, no Brasil e em grande parte do mundo, foi influenciada por este novo ideário de vida e, com o fim da guerra e do racionamento de tecidos, a mulher do início dos anos 50 se tornou mais feminina e glamourosa, fazendo com que o New Look de Dior, lançado em 1947, se transformasse na silhueta símbolo dos anos 50 - uma cintura marcada com saias muito rodadas e volumosas que chegavam aos tornozelos. Metros e metros de tecido eram gastos na confecção deste modelo que ainda tinha acessórios luxuosos, como luvas, saltos altos e joias. Uma moda feita, sob medida, para uma mulher que ansiava pela volta da sofisticação. Dior, que morou nos EUA enquanto a Europa foi assolada por combates, voltou à França para lançar a nova tendência.

Neste momento, florescem a produções intelectuais e artísticas brasileiras - alguns influenciados pelo nacionalismo; outros, pela cultura de massa importada dos Estados Unidos. As músicas norte-americanas começam a se destacar em nossas paradas de sucesso (execução e vendagem) e isto passa a incomodar alguns críticos. Surgem, então, as primeiras big bands brasileiras: curiosamente, a mesma guerra que decretou o fim da era das big bands, nos EUA, marcou o início da nova febre aqui no Brasil – onde houvesse um palco e dançarinos dispostos a rodopiar pelo salão, lá haveria uma orquestra. Para a juventude, os bailes de debutantes, de formatura e as festinhas em casas de família (os chás dançantes) passaram a ser uma importante e fundamental forma de integração com o sexo oposto. É interessante ressaltar que, no Brasil, o termo big band foi livremente traduzido como orquestra.

As orquestras tocavam em palcos nobres, como clubes e hotéis, e também em lugares mais populares, como gafieiras e dancings, e o eclético repertório poderia reunir Glenn Miller, Ary Barroso e Noel Rosa. O período compreendido entre o fim da Segunda Grande Guerra e o começo dos anos 60 produziu a mais sofisticada geração de músicos que o Brasil já teve: maestros, arranjadores, profissionais com formação internacional e grande conhecimento de harmonia e técnica. Aníbal Augusto Sardinha (o Garoto), Esmeraldino (cavaquinho), Orlando Silveira (acordeon), Portinho (clarinete), Severino Araújo (clarinete), Waldir Calmon (piano) e os maestros Leo Peracchi e Radamés Gnatalli, só para citar alguns.

Leo Peracchi e Radamés Gnatalli foram maestros da rádio Nacional: Peracchi era responsável pelo segmento erudito da rádio, e Gnatalli, pelo popular. Suas orquestras, com naipe de cordas inclusive, gravaram vários discos e acompanharam cantores famosos, mas nunca foram big bands no mais puro sentido da expressão, pois não tocavam em bailes e os improvisos musicais não eram frequentes em seus arranjos. No entanto, é fundamental falar nestes dois gênios a quem a música brasileira tanto deve. Segundo músicos como Tom Jobim, Dory Caymmi e alguns historiadores, Peracchi e Gnatalli foram os grandes responsáveis por modernizar a orquestração popular brasileira, influenciando novos arranjadores. O disco Por Toda a Minha Vida, da cantora Lenita Bruno (1959), composto apenas por canções de Tom e Vinicius, teria sido um divisor de águas por causa dos surpreendentes arranjos de Leo Peracchi.

Podemos falar de várias orquestras de baile, que também costumavam lançar discos e trabalhar em rádios, como a do cantor El Cubanito que, apesar do apelido, era o brasileiro Álvaro Francisco de Paula. Álvaro montou uma big band de ritmos afro-cubanos muito popular na década de 50 e chegou a gravar, com o pianista Waldir Calmon, o enorme sucesso Cao, Cao Mani Picao (J. Carbó Menendez). Outra orquestra de grande prestígio era a do maestro Ivan Paulo, mais conhecido como Maestro Carioca que, além dos bailes, tocou na rádio Nacional e, posteriormente, na rádio Tupi. No Dancing Brasil, atuava a Os Copacabana e, reinando absoluta no estilo gafieira, a do trombonista Raul de Barros.

Mas nenhuma big band foi tão famosa e longeva no Brasil como a Tabajaras, do maestro e clarinetista Severino Araújo. Lançando-se em intermináveis turnês pelo país, a Tabajaras conseguiu sobreviver à decadência do rádio, veículo que indiretamente acabava promovendo o nome de suas orquestras contratadas. A administração rigorosa de seu bandleader também ajudou a manter o grupo coeso ao longo dos anos o qual se destacou pela excelência de músicos formados na exigente escola do frevo. Com imponentes arranjos e improvisos, inovou, trazendo ritmos genuinamente brasileiros, como o chorinho e o samba-canção, para o público dos salões de baile, adaptando o estilo norte-americano das big bands à nossa realidade.¹

Talvez o(a) leitor(a) estranhe o fato de eu não ter mencionado a orquestra de meu pai, Waldir Calmon, mas esta não era a tônica de seu trabalho. Ele usava a formação menor, o conjunto, com muito mais frequência.

No próximo post, falaremos sobre os motivos que levaram ao declínio das big bands (ou orquestras de baile) no Brasil.


¹ Antes da moda das big bands no Brasil, o regional era o formato mais constante de grupo musical. Apenas com instrumentos acústicos, era normalmente composto por violão de sete cordas, violão de seis cordas, bandolim, flauta, cavaquinho e pandeiro.


Na foto acima, orquestra Tabajaras sob o comando de seu maestro Severino Araújo. O vídeo mostra o choro Espinha de Bacalhau (Severino Araújo) em solo espetacular de sax alto - infelizmente, o nome do saxofonista não foi citado e, apesar de minhas buscas na internet, não consegui identificá-lo. Se alguém souber o nome do solista, por favor, comunique-se comigo, pois faço questão de sempre dar o crédito ao artista. Podemos perceber o arranjo típico de big band para este ritmo bem brasileiro.
Fontes:
Livros:
  • Coleção Nosso Século – Vol 4 (A Era dos Partidos), SP, Ed Abril, 1980
  • MARANHÃO, Ricardo, O Governo Juscelino Kubitschek, SP, Ed Brasiliense, 1988, 5ª edição
  • MOSTARO, Carlos Décio /e outros/, História Recente da MPB em Juiz de Fora – 1º tomo, MG, Ed Independente, 1977
  • ALMEIDA, Rui Gomes de, Ideias e Atitudes, RJ, Livraria José Olímpio Editora, 1965
  • CARDOSO, Míriam Limoeiro, Ideologia do Desenvolvimento (Brasil: JK-JQ), RJ, Ed Paz e Terra, 1978, 2ª edição
  • AQUINO, Rubim Santos Leão de /e outros/, História das Sociedades Modernas às Sociedades Atuais,  RJ, Ed Ao Livro Técnico, 1978
  • LAMBERT, J., América Latina – Estruturas Sociais e Instituições Políticas, Cia Ed Nacional, SP, 1969


Jornais:
  • BÁRBARA, Danúsia, “Para Ler e Relembrar”, JB, RJ, 27/06/1975, caderno B, pag 01
  • SCHILD, Suzana, “Feito Para Dançar – o Som de Waldir Calmon Continua na Praça”, JB, RJ, 02/07/1979, caderno B, pag 01
  • O Silêncio de um Som Feito Para Dançar”, JB, RJ, 12/04/1982, caderno B, pag 01
  • BREAN, Denis, “Waldir Calmon”, Gazeta Esportiva, SP, 29/03/1960, coluna O Rádio e a TV, pag 07


Revistas:
  • Música Para Dançar – Segredo Simples de Waldir Calmon”, Revista do Rádio, RJ, 29/05/1965, pag 34
  • O Sucesso do Cantor Fernando Barreto”, Revista do Rádio, RJ, 07/06/1957, pag 28
  • TÁVOLA, Arthur da, Revista Amiga, RJ, Ed Bloch, 28/04/1982, última pág


Entrevistas com frequentadores de bailes de orquestras


Sites:

A Era das Big Bands - Parte III


O Fim

VI Festival da Canção (Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1968). Fonte: Correio da Manhã

Nos anos 60, tudo mudou! O começo da década foi marcado pela concretização de projetos ideológicos e culturais nascidos nos 50: o rock e a cultura de vanguarda encontraram um fértil terreno para se desenvolver no meio de tantas guerras e conflitos que ocorreram nos anos seguintes. Se os 50 ficaram conhecidos como anos dourados, os 60 se caracterizaram pela perda da inocência e foram uma explosão de juventude em todos os aspectos.

Nos EUA, os jovens, cansados de se submeter aos rígidos padrões morais dos anos 50, começaram a questionar o seu papel na sociedade. Eles eram obrigados a agir e a pensar como os mais velhos e a reproduzir o seu modo de ver o mundo, além de serem convocados, mesmo contra a sua vontade, para lutar em frentes como a da Coreia (1951-1953) onde cinquenta mil soldados norte-americanos morreram. No mundo todo, milhares de jovens pereceram em conflitos na Indochina, Oriente Médio, África e Caribe durante os anos 60 e 70.

A juventude não queria mais herdar a identidade dos pais ou dos avós. Ela buscava a própria identidade. Nesta efervescência, surgiu, em diversos países, um movimento de negação de todos os valores morais, estéticos e políticos estabelecidos até então. Este movimento pregava a paz e o amor e também lutava pelos direitos civis das minorias: negros, mulheres e gays. Manifestações e palavras de ordem mobilizaram os jovens contestadores que costumavam usar cabelos longos, roupas coloridas e, na maioria das vezes, drogas psicodélicas. Este novo comportamento ficou conhecido como contracultura.

Muitas mulheres também não se conformavam com o retrocesso de seu papel na sociedade dos anos 50 e lutavam para ter os mesmos direitos dos homens e serem independentes. A comercialização da pílula anticoncepcional, no começo dos 60, incentivou o surgimento de uma classe de profissionais do sexo feminino que, pela primeira vez, tinha o controle da própria fertilidade e, portanto, poderia se dedicar mais ao trabalho e planejar uma gravidez. A pílula, como ficou conhecida, produziu um imenso impacto social, libertando sexualmente a mulher. Alguns historiadores, no entanto, atribuem a revolução sexual também ao uso, em larga escala, da penicilina que, apesar de ter sido descoberta em 1928, só foi disponibilizada a partir de 1941 por causa da Segunda Guerra: a sífilis era uma doença fatal, transmitida sexualmente, que ameaçava as tropas nas frentes de batalha e a penicilina era o único tratamento eficaz. Para preservar os seus jovens soldados, os EUA aceleraram o desenvolvimento deste antibiótico. A revolução sexual e de costumes foi tão intensa que também atingiu a moda: as saias longas e rodadas, que usavam metros e metros de tecido, foram trocadas pela minissaia que, sem dúvida, possuía um apelo mais sensual. Criada pela estilista inglesa Mary Quant, as mulheres dos anos 60 só precisavam de um diminuto pedaço de pano para criar o seu modelito.

Todas estas transformações aconteceram quase que simultaneamente em todo o planeta e é impossível desassociá-las da televisão. Apesar de estrear no Brasil em 1951, a TV só ganhou impulso na década de 60 com a popularização dos aparelhos receptores. O advento do VT (vídeo tape) facilitou a divulgação no mundo todo de cenas fortes que antes o rádio deixava por conta da imaginação do ouvinte. A narração foi trocada pela ação.

No Brasil, o peso do projeto de JK, 50 anos em 5 começou a cobrar a sua conta: o desenvolvimento proposto pelo ex-presidente foi feito com excesso de endividamento e dependência de capital externo. A construção de Brasília, em tão pouco tempo, consumiu recursos de que o País não dispunha e gerou uma inflação descontrolada. A partir de 1968, com o governo militar, a economia brasileira viveu um boom e o PIB saltou de 3,7% para 11%. Este crescimento aconteceu, sobretudo, por causa da participação do Estado na economia, mas, apesar disto, a distribuição de renda concentrou-se ainda mais.

A posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros, incomodou os meios militares e os EUA, pois Jango, como era conhecido, nutria uma certa simpatia pelo regime comunista. Em 31 de março de 64, as Forças Armadas tomaram o poder e o Brasil entrou em uma violenta ditadura que duraria mais de vinte anos, passando a integrar o seleto grupo de países da América Latina que estavam vivendo um regime autoritário. O golpe de 64 não chegou a ser uma revolução militar, mas foi, sem dúvida, uma revolução social - os jovens foram às ruas, contestar e brigar, e muitos morreram. Ameaçado, o poder vigente decretou o AI-5, em 1968, e proibiu quaisquer manifestações políticas contra o regime.

A ditadura política impôs novas regras à produção cultural, censurando músicas, filmes, peças de teatro... O perfil das composições musicais mudou e muitas letras de amor ou de crônicas do dia a dia deram lugar às mensagens de protesto, sublinhando formas de resistência à nova ordem política e com uma função social bem diferente daquela de anos anteriores. A valorização das letras das canções dificultou a divulgação da música instrumental proposta pelas grandes orquestras.

O conturbado período gerou uma intensa agitação cultural com o envolvimento, principalmente, da juventude universitária – que desejava uma cultura nacionalista de esquerda e já estava farta da colonização cultural imposta pelos EUA. A bossa nova já não a satisfazia, pois, apesar de ter promovido uma reformulação na linguagem musical brasileira, faltava-lhe conteúdo: os jovens já não queriam mais ouvir falar de “mar, amor e flor” e buscaram canções mais engajadas politicamente.

Os festivais promovidos por algumas emissoras de TV talvez tenham sido os maiores responsáveis pela nova cara da música popular brasileira. Eles fizeram muito sucesso junto à juventude universitária – que repudiava o movimento da Jovem Guarda por considerá-lo alienante e muito próximo aos padrões “imperialistas” norte-americanos.

A contracultura chegou ao Brasil através do tropicalismo que apareceu nos festivais. Inspirados no movimento Antropofagista dos modernistas da Semana de Arte de 1922, os tropicalistas também queriam “comer” a cultura externa (não necessariamente a norte-americana) e digeri-la de uma forma bem brasileira. Eles não queriam usar a música como forma de protesto, mas como uma maneira de mostrar todas as facetas da desigualdade social no País e nossa brasilidade em uma estética inovadora. Foram criticados pelos nacionalistas que confundiram a criatividade do movimento com subserviência cultural por agregarem alguns elementos "importados" às suas interpretações. É importante ressaltar que o tropicalismo não introduziu a guitarra elétrica na música brasileira, pois a jovem guarda já estava fazendo isto há tempos. Ele introduziu uma gama de novos tipos de sons na música através dos pedais das guitarras elétricas - que se tornaram muito populares no mundo, a partir dos anos 60, por causa do sucesso de grupos de rock, como os Beatles, e do avanço da tecnologia. Podemos dizer que o tropicalismo trouxe a experimentação de novas sonoridades à nossa música.

Toda esta rebeldia culminou em 1968 quando os movimentos de contestação estudantis tomaram conta das ruas em diversas cidades ao redor do mundo. Pelo contexto, vemos como foram agitados os anos 60. Foi provavelmente a primeira vez na história em que o engajamento político, a modernização da linguagem artística e a participação maciça da mídia convergiram para a mesma direção.

Não havia mais espaço para o formato datado das big bands. O romantismo foi soterrado pelas cruas imagens de TV; com a revolução sexual, rapazes e moças não precisavam de eventos sociais para interagir, e a música instrumental perdeu espaço para letras de cunho político-social. Algumas orquestras tentaram furar este bloqueio e, por algum tempo, até chegaram a fazer sucesso, como a Banda Veneno, de Erlon Chaves, que chegou ao ápice da fama em 1971, no V Festival Internacional da Canção (FIC), realizado pela TV Globo. Erlon era negro e apresentou a música Eu Também Quero Mocotó (Jorge Benjor), vestido de forma extravagante e ladeado por belas mulheres brancas com roupas insinuantes que dançavam de forma sensual e o beijavam. Um escândalo suficiente para sentir a mão pesada da ditadura, do racismo e comprometer o futuro promissor de sua banda. Em 14 de novembro de 1974, no meio de uma discussão e defendendo o seu amigo, cantor e preso político Wilson Simonal, teve um infarto e morreu.

A era das big bands no Brasil foi definhando lentamente até ficar restrita a bailes nos subúrbios e em cidades do interior. Esta linguagem musical herdada dos EUA já não era mais adequada ao nosso momento histórico e, ao longo dos anos, as orquestras brasileiras foram sofrendo vários golpes. O último e decisivo foi o avanço do desenvolvimento tecnológico que permitiu a profusão da música eletrônica com grande qualidade a baixo custo.

Já que o modismo foi importado dos EUA e o fim da Era do Swing data oficialmente do desaparecimento do bandleader Glenn Miller, em 1944, talvez possamos dizer que a morte do maestro Severino Araújo, em 3 de agosto de 2012, tenha decretado simbolicamente o fim das orquestras de baile no Brasil.

Na foto acima, VI Festival da Canção (Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1968). A fonte é o jornal Correio da Manhã.



Não achei um vídeo ao vivo da Banda Veneno, então escolhi esta projeção de imagens com a música mais famosa da banda: Eu Também Quero Mocotó (Jorge Benjor). O cantor é o próprio Erlon Chaves e é interessante notar fotos de algumas pessoas relacionadas com o maestro, como Wilson Simonal, Vera Fischer (sua namorada) e Flávio Cavalcante. Erlon foi jurado do programa de Flávio - que também contava com a banda do Maestro Cipó. A partir de 1972, Cipó também levou sua orquestra de gravações e TV para os bailes pelo Brasil.

Para quem quiser entender um pouco mais sobre a interferência do período da ditadura na música, recomendo ler o capítulo do livro O Gogó de Aquiles, do músico Rique Reis (vocalista do MPB-4) que fala justamente de Simonal, Erlon Chaves e Tony Tornado.
Fontes:
Livros:
  • Coleção Nosso Século – Vol 4 (A Era dos Partidos), SP, Ed Abril, 1980
  • MARANHÃO, Ricardo, O Governo Juscelino Kubitschek, SP, Ed Brasiliense, 1988, 5ª edição
  • MOSTARO, Carlos Décio /e outros/, História Recente da MPB em Juiz de Fora – 1º tomo, MG, Ed Independente, 1977
  • ALMEIDA, Rui Gomes de, Ideias e Atitudes, RJ, Livraria José Olímpio Editora, 1965
  • CARDOSO, Míriam Limoeiro, Ideologia do Desenvolvimento (Brasil: JK-JQ), RJ, Ed Paz e Terra, 1978, 2ª edição
  • AQUINO, Rubim Santos Leão de /e outros/, História das Sociedades Modernas às Sociedades Atuais, RJ, Ed Ao Livro Técnico, 1978
  • LAMBERT, J., América Latina – Estruturas Sociais e Instituições Políticas, Cia Ed Nacional, SP, 1969

Jornais:
  • BÁRBARA, Danúsia, “Para Ler e Relembrar”, JB, RJ, 27/06/1975, caderno B, pag 01
  • SCHILD, Suzana, “Feito Para Dançar – o Som de Waldir Calmon Continua na Praça”, JB, RJ, 02/07/1979, caderno B, pag 01
  • O Silêncio de um Som Feito Para Dançar”, JB, RJ, 12/04/1982, caderno B, pag 01
  • BREAN, Denis, “Waldir Calmon”, Gazeta Esportiva, SP, 29/03/1960, coluna O Rádio e a TV, pag 07

Revistas:
  • Música Para Dançar – Segredo Simples de Waldir Calmon”, Revista do Rádio, RJ, 29/05/1965, pag 34
  • O Sucesso do Cantor Fernando Barreto”, Revista do Rádio, RJ, 07/06/1957, pag 28
  • TÁVOLA, Arthur da, Revista Amiga, RJ, Ed Bloch, 28/04/1982, última pág

Entrevistas com frequentadores de bailes de orquestras

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