Tentando Relaxar
Era
um domingo nublado em janeiro de 1985. A orquestra havia trabalhado durante o
fim-de-semana todo e, desta vez, sem levar calote! Estava praticamente sem
dormir, mas o dinheirinho dos cachês do fim-de-semana me ajudou a comprar o
ingresso. O baile em Itaboraí entrou como perdas e danos mesmo e tive de
conviver com isto. Vida que segue.
O
problema é que, depois do maravilhoso dia doze, choveu. E muito! Verão no Rio
de Janeiro sempre é chuvoso, com tempestades rápidas e bem intensas, que
normalmente causam grandes alagamentos. A Cidade do Rock, onde as pessoas
caminhavam sem problemas e se sentavam confortavelmente em qualquer lugar do
agradável gramado, se transformou em um lamaçal, pois a grama havia sido
plantada pouco tempo antes do início do festival e não houve tempo para criar
raízes profundas. Pelo menos, foi isto que li na imprensa. O fato é que, quando
as pessoas pisavam, remexiam a terra molhada, com grama e tudo mais que estava
em cima.
Separei
umas galochas compactas e blindadas de plástico, com salto grosso, bem seguras,
que protegiam meus pés e iam até a metade de minhas canelas. Eram um “bloco” de
plástico muito duro, sem costuras ou cola. Com elas, tinha a nítida sensação de
que poderia atravessar um dilúvio de proporções bíblicas. Meu irmão olhou e
disse:
-
Não vai assim, não. Vai com aquelas sapatilhas ali.
E
apontou para as minhas delicadas e confortáveis sapatilhas de couro, exatamente
igual as que estão na moda hoje em dia, que deixam a parte superior do pé à
mostra e podem ser retiradas com facilidade.
- Mas, Marcus, estão dizendo que tem muita
lama. As botas me protegerão mais.
- Vai por mim. Fui todos os dias e sei o que estou falando.
- Vai por mim. Fui todos os dias e sei o que estou falando.
Contra
este argumento, o que pensar? Troquei minhas poderosas galochas pelas fofas
sapatilhas, vesti uma calça jeans e lá fui eu com a turma. Quando cheguei, me
assustei com a grandiosidade do evento: muitos guichês (desta vez, comprei na
hora), muita gente, muitos portões, muitas lojas, palco imenso... Uma loucura.
E também a lama e o mau cheiro. Quando andava, minhas frágeis sapatilhas
grudavam na lama e, lógico, saíam do pé, fazendo com que eu pisasse, até me
atolar, naquele misto de grama, terra, água, comida e sei-lá-mais-o-quê. Meus
dedos, agora fétidos também, mergulhavam até que minhas pegadas ficassem
marcadas naquela mistura indescritível. Isto aconteceu dezenas de vezes até que
alguém teve a ideia de envolver nossos tão nojentos pés em sacos de lixo. Não
sei onde conseguiram aqueles sacos e, francamente, prefiro não saber, mas deram
uma pequena ajuda. O problema agora era como parar de escorregar e cair sentada
no chão de cinco em cinco minutos. Plástico em cima de uma superfície molhada
nem sempre é uma boa ideia, mas era o que tínhamos para o momento... Mesmo
imunda, eu evitava sentar até porque todos os lugares razoáveis já estavam
ocupados. Só consegui sentar uns dez minutinhos, porém começou a chover e
tivemos de sair. Não foi uma grande chuva – o suficiente para eu me levantar e
alguém pegar o meu lugar. Fiquei em pé cerca de oito horas seguidas, tentando
caminhar, com dificuldade, na lama grudenta ou escorregadia. Por alguma razão,
lembrei-me do Monstro da Lagoa Negra e seu caminhar arrastado...
Banheiro,
nem pensar: as filas eram imensas e estavam tão sujos que desistíamos. Comer ou
beber também era difícil, pois, sendo o último dia, as lanchonetes não estavam
mais renovando os estoques. Nestas alturas, meu irmão já estava com outro grupo
de amigos e bem longe de mim. Melhor para ele.
Não conseguimos chegar para o primeiro show,
pois resolvemos tudo em cima da hora, meio que no improviso. Pegamos um ônibus
perto da nossa rua, em Copacabana, e paramos quase na entrada do festival, na
Barra da Tijuca. Eram linhas especiais com
tarifa normal, que funcionaram apenas para o evento, com muitos ônibus,
daqueles comuns mesmo, quentões, sem luxo algum, porém muito eficientes e
rápidos.
Comprei meu ingresso
rapidamente em um dos vários guichês à disposição e, assim que entrei, tive uma visão impactante daquele
admirável mundo novo: gente por todo lado, andando para lá e para cá, com
Erasmo Carlos acabando sua apresentação no palco incrivelmente alto e onde se
poderia jogar uma partida de futebol sem problemas. Não havia telões e, para
conseguir ver bem os artistas, só na turma do gargarejo ou com binóculos. Optei
pelo gargarejo e assisti à Blitz, The B-52's e Nina Hagen
com uma boa visão. Todo mundo espremido e em pé, claro. De vez em quando, algum
amigo me levantava para que eu pudesse enxergar melhor.
Na verdade, não era o dia de Eramos Carlos,
porém, depois de ser hostilizado e vaiado pelo público em sua primeira
apresentação, decidiu trocar a data do segundo show. Houve alguns equívocos na
distribuição das atrações durante o festival e tivemos outros casos como o de
nosso querido Tremendão. Seja por qual motivo for, nunca se justifica o
desrespeito a um artista sério, gostando ou não de seu trabalho. Respeito é bom
e todos gostamos.
Quando
o último show começou, respirei aliviada, pois estava imunda, com fome, sede,
cansaço, vontade de ir ao banheiro e com uma tremenda dor na lombar por ficar
em pé tantas horas seguidas. Só que o último show durou duas horas!!!! Sério.
Nunca imaginei que desejaria tanto ver o fim de um show do fantástico Yes, mas desejei. A esta altura, eu já estava longe do palco, tentando sentar
ou me escorar em algum lugar, alguém ou alguma coisa. Apesar de longe, consegui
vê-los e ouvi-los muito bem.
Para quem não teve a sorte
de conhecer, o Yes é uma banda britânica de rock progressivo e a formação que tocou aqui no Rio foi: Jon Anderson (vocal), Tony
Kaye (teclados), Chris Squire (baixo), Alan White (bateria) e Trevor Rabin
(guitarra). Todos são excelentes músicos e seu trabalho é de altíssimo nível. A
apresentação ainda contava com um belo e modernoso aparato de raios laser. Tudo
da melhor qualidade. Mas eu estava morta! Morta com farofa! E não consegui
curtir, como deveria e desejava, o show deles. Uma pena. Contudo, ainda me
lembro daqueles inacreditáveis raios laser verdes, rasgando o céu noturno,
cintilando na noite nublada e escura. Quase uma miragem.
O Rock in Rio acabou com um show pirotécnico e, após os fogos, não
consegui correr para pegar logo o ônibus, tal o estado lastimável em que me
encontrava. Mas foi bom, porque minha lentidão permitiu que a multidão fosse
embora logo, lotando os ônibus. Depois de andarmos uma légua até o ponto
(quando estamos cansados, tudo parece mais distante), finalmente sentei!!!
Nunca achei tão fantástico pegar um ônibus!!! Consegui vir sentada, sozinha,
com um banco para chamar de meu, e cheguei a desejar que a viagem de volta demorasse
uns três dias só para curtir, até o fim, aquele banquinho (que estava limpo até
eu me sentar nele).
Quando cheguei em casa,
joguei as sapatilhas fora (ai, ai, elas eram tão confortáveis...), tomei um
banho dos pés à cabeça (caprichei nos pés), desinfetei todos os meus dedinhos
com álcool, comi algumas coisas e fui para a cama – afinal, estava praticamente
sem dormir há quase 48 horas. O pior é que a sensação de sujeira não saía por
nada, por mais banhos que eu tomasse. Parecia que eu só conseguiria me limpar
totalmente se ficasse mergulhada na água sanitária. Até para uma pessoa com 21
anos, aquilo foi demais. Apesar de o Rock
in Rio ter sido um evento incrível, minha experiência em festivais de rock
começou e acabou ali.
Alguns dos shows a que tentei assistir no Rock'n'Rio 1985. De cima para baixo: James Taylor com You've Got a Friend (Carole King) e George Benson com Inside Love (Jones).
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