quarta-feira, 25 de abril de 2018

Um Pouco de Mim (1)

A Origem de Tudo



Postarei os seis primeiros textos que escrevi para a minha coluna no Jornal Banda da Banda, de Amparo, SP. A intenção era me apresentar para os(as) leitores(as) e fazê-los(ls) entender a importância da música em minha formação como cantora e ser humano. Espero que gostem! Um abraço!

Muito prazer! Meu nome é Marcia. Sou cantora, compositora, formada em Jornalismo e filha do pianista Waldir Calmon e da também cantora Marta Calmon que, solteira, usava o nome artístico de Marta Kelly. Minha mãe deixou de cantar quando engravidou e só voltou dezenove anos depois.
    
Para quem não conheceu o trabalho de meu pai, aqui um brevíssimo resumo: nos anos 50, Waldir Calmon foi talvez o artista que mais vendeu discos no Brasil e possuía um estilo inconfundível de tocar o piano, em oitavas. Seu repertório era composto, em sua maioria, por músicas dançantes e ele amava fazer os casais rodopiarem pelo salão. Quanto mais gente se levantava para dançar, mais feliz ele ficava. Seu conjunto (ou, mais raramente, orquestra) tocou em bailes pelo Brasil inteiro e revelou grandes músicos, como Milton Banana, Paulo Nunes, Rubens Ohana, Fernando Barreto e Humberto Garin, entre outros. Em sua vasta discografia, destaca-se a série Feito Para Dançar, com 12 volumes, cujos discos possuíam um lado de músicas corridas, sem intervalos, ideal para as festinhas em casas de família. Ele também teve um programa de TV durante dez anos, Ritmos S. Simon, e participou de filmes nacionais. E, para vocês entenderem os caminhos que me levaram à música, vou escrever um pouco sobre nossa família.

Morávamos no Rio de Janeiro, em uma rua de Copacabana bem tranquila (por mais incrível que isto possa parecer). Nossa rua, a Cinco de Julho, era agradável, arborizada e sempre encontrávamos alguns amigos de meus pais. Havia um que me chamava a atenção por causa de seu cachorrinho peludo (se não me falha a memória, um poodle branco). Quase todas as tardes, os encontrávamos. Meu pai e aquele senhor conversavam durante horas e eu adorava, pois ficava brincando com o bichinho. Hoje em dia, sei que o dono daquele belo cãozinho era Carlos Machado, o Rei da Noite, produtor de suntuosos espetáculos e revistas musicais. Mas ali estava somente um homem vestido com roupas simples, desfrutando da companhia de seu animalzinho de estimação.
    
Desde cedo, meu irmão, Marcus, e eu respiramos música! Havia instrumentos, caixas de som e todo tipo de equipamento pelo apartamento, enlouquecendo minha mãe que, em uma luta inglória, tentava escondê-los a todo custo. Certa vez, um daqueles antigos microfones de estúdio, que pesava cerca de uma tonelada, caiu em cima de meu pé e, sem exagero, quase quebrei alguns dedos. O microfone saiu ileso.
     
Já bem pequena, aprendi a dividir o espaço com o imenso piano preto – quando somos crianças, tudo parece maior – de um quarto de cauda que fazia de cabana em minhas brincadeiras. Tínhamos uma vitrola Motorola, também imensa, daquelas que tocavam vários discos em sequência e rodava até 78 rotações. Quando a música tocava, eu dançava e em qualquer lugar: na nossa sala, na sala dos outros, na rua, na boate de meu pai...
    
A boate Arpège ficava na rua Gustavo Sampaio, no Leme (RJ), e meu irmão e eu, ainda crianças, só passávamos lá durante o dia. O Leme era famoso por suas sofisticadas casas noturnas que, junto com a Arpège, fervilhavam na elegante noite carioca: Drinks, Sacha’s, Fred’s, Plaza... onde talentosos músicos e cantores, como também personalidades brasileiras e estrangeiras circulavam, ostentando seus vestidos, ternos, joias e carrões. Meu pai compôs e gravou até uma música chamada Samba no Arpège (Waldir Calmon – Luís Bandeira) e lançou uma série de vinis, com três volumes, intitulada Uma Noite no Arpège. O majestoso piano Steinway, que reluzia absoluto em nossa sala, tinha sido da boate até ser trocado por um modernoso órgão elétrico Hammond: a princípio, um B2, mas meu pai não resistia a uma tecnologia e logo o trocou por um modelo mais atual, o B3.  Para dizer a verdade, com todas aquelas teclas, pedais, botões, alavancas e luzes, o instrumento mais me assustava do que convidava. Eu tinha sempre a impressão de que seria abduzida por ele a qualquer momento.
    
Voltando ao lar, lembro ainda de minha mãe gravando algumas músicas de Festivais da Canção com um gravador de rolo pesadíssimo - ela colocava o microfone em frente ao autofalante da TV e captava um som ruim, mas o suficiente para meu pai escutar e avaliar se valia a pena ou não colocar a canção em seu repertório dançante.
    
Fui crescendo e, aos poucos, o piano deixou de ser uma cabana de brinquedo para se tornar uma grande paixão. Aos oito anos, decidi que iria aprender a tocar. Porém, isto não estava nos planos de meu pai que desejava me ver formada em Medicina. Ele achava que eu era musical demais e deveria me proteger de uma carreira tão difícil como a música. Mas como explicar isto a uma criança tão determinada? Ele não explicou. Ele me enrolou:

- Pai, quero aprender piano! 
- Não tenho tempo para ensinar, minha filha.
- Mas a minha amiguinha tem uma professora de piano muito legal. Ela pode me dar aulas.
- Ok, pode deixar. Eu mesmo vou lhe dar aulas.

E deu. UMA aula! UMA única aula! Comprei caderno de música, lápis fofo, borracha bonitinha... e tive UMA aula. Todas as vezes que eu reclamava, meu pai dava uma desculpa. Acabei pegando os seus livros de música e aprendendo, sozinha, os rudimentos da teoria musical. Comecei a tocar e ele ficou bastante assustado, porém orgulhoso. Era engraçado, pois não gostava do rumo que as coisas estavam tomando, mas ficava todo bobo quando me via ler partituras – mesmo as mais simples. Desenvolvi uma técnica toda própria para tocar, fazendo os acordes com a mão direita e, com a esquerda, os baixos. Como não sobrava mão para tocar a melodia, comecei a cantar. E sabe que formei um repertório bem razoável?
   
Ainda com uns oito anos, ganhei minha rádio-vitrolinha Belair vermelha. Aí a coisa ficou séria! Ela era portátil e funcionava com pilha também, indo comigo a qualquer lugar! Fiquei impossível. Impossível também de suportar, pois era música o tempo todo: quando chegava da escola, já ia para o banho, ouvindo a rádio Mundial ou Tamoio e, depois do almoço, começava a cantoria. Eu não aguentava só ouvir. Tinha de cantar também! E em um idioma só meu. Meu parceiro predileto era Michael Jackson, pois sua voz infantil parecia com a minha e eu amava suas músicas. Michael era como um irmão mais velho – passávamos todas as tardes juntos, mas ele não implicava comigo.
    
Com doze anos, eu já comprava muitas revistas sobre música e, numa delas, li que um filme dos Beatles, Help, seria exibido novamente. O grupo já havia se separado há alguns anos e, por alguma razão, houve um revival. Marcus e eu fomos ao cinema e ficamos encantados com aqueles quatro rapazes ingleses. A partir daí, descobrimos o rock! Ouvimos e assistimos a tudo que podíamos sobre eles. Um pouco mais tarde, enlouqueci (eu e todas as meninas do mundo) pelo guitarrista-cantor-compositor-gatinho Peter Frampton e decidi aprender a tocar violão como meu ídolo.

- Pai, quero aprender violão. 
- Não tenho tempo para ensinar, minha filha.
- Mas a minha amiga tem um professor de violão muito legal. Ele pode me dar aulas.
- Ok, pode deixar. Eu mesmo vou lhe dar aulas.
    
Desta vez foi diferente: ele não deu nem uma aula sequer! Nenhuma! Comecei, mais uma vez, a pesquisar em seus livros, entretanto não havia absolutamente nada para violão. Passei então a comprar umas revistinhas chamadas Vigu que vinham com várias letras de músicas, os acordes em cima das letras e a tablatura. Só me atrapalhei um pouco na mão direita, mas minha amiga, a do professor legal, me deu umas dicas. Foi uma baita conquista quando toquei minha primeira música no violão que, é claro, era o maior sucesso de Frampton, Baby I Love Your Way. E, novamente, meu pai ficou bastante assustado, porém orgulhoso. Meu violão era menor, adequado a uma menina de 12 anos, porém tinha um defeito terrível: não afinava o bordão (sexta corda) nem com reza forte e aquilo me irritava profundamente. A vantagem é que, hoje em dia, posso identificar um bordão desafinado a dez quilômetros de distância.
    
Aqui faço um parêntese: mesmo meu pai se assustando com minhas "conquistas" na música, gostava de me ver tocando e chegávamos a fazer alguns números juntos em casa, ele no piano e eu no violão. Às vezes, trocávamos, mas não ficava tão bacana... Quando ele ia “tirar” uma música para tocar com seu conjunto e tinha alguma dúvida na melodia, me perguntava – afinal, eu ouvia rádio e discos o dia inteiro! Se eu tinha dificuldade em montar algum acorde ou fazer uma divisão, ele me explicava. Quando ele tocava o piano, eu sempre tinha as minhas preferidas e pedia. Meu pai tinha receio de que eu optasse pela música profissionalmente, mas não deixava de ficar feliz por me identificar tanto com ele.
    
No próximo post, a segunda e última parte deste texto, falando do movimento discoteque, dos diversos estilos musicais que coexistiam não tão pacificamente em minha casa, das gravações nos estúdios e da única vez em que cantei com o conjunto de meu pai. 



Peter Frampton, ao vivo, cantando Baby, I Love Your Way (Frampton) - a música que me motivou a aprender violão!

Um Pouco de Mim (2)

A Origem de Tudo (cont)


Com catorze anos, conheci o movimento discoteque através do filme Os Embalos de Sábado à Noite e enlouqueci! Enlouqueci também os vizinhos, porque o vinil rodava sem parar. Nesta época, eu já havia trocado minha rádio-vitrolinha Belair vermelha pela enorme  Motorola com seu estéreo, (muito) alto e bom som. O disco acabava, eu recolocava do começo. Foram tantas reproduções que a agulha pesada daquele vitrolão, tal qual uma broca, danificou os sulcos irremediavelmente e os tornou inaudíveis. Quanto ao filme, assisti umas 1.254 vezes, mas este dado precisa ser atualizado.

Todo tipo de música tocava lá em casa: minha mãe adorava Roberto Carlos, orquestras e as mais antigas; meu irmão era roqueiro; eu amava a música negra da Motown, bossa-nova e MPB, e meu pai curtia tudo. Graças a meu irmão, conheço razoavelmente bem o rock dos anos 70 e 80 – eu e nossos pacientes vizinhos. Sério, eles mereciam uma medalha de honra ao mérito. Por mais incrível que pareça, nunca houve uma reclamação naquele paraíso de decibéis. E, às vezes, havia uma orgia sonora, com os rocks de meu irmão e minhas músicas dançantes se fundindo pelo ar e escapando por todas as janelas do apartamento. Ele na sala e eu no quarto. Perdão, vizinhos...

Em 1978, meu pai voltou a gravar novamente depois de um hiato de oito anos. Fiquei empolgadíssima, afinal não queria perder a oportunidade de acompanhar uma gravação desde o início.

- Pai, quero ir com você.
- Você está de férias. Não prefere ir à praia, minha filha? Vai ficar trancada em um estúdio por seis horas?
- Vou.

E fui. Eu e ele. Foi maravilhoso ver aquele disco nascer. Ele compôs algumas músicas e, claro, dei muito palpite, ajudei a colocar títulos e conheci músicos geniais. Na semana seguinte, eles iriam gravar por duas sessões seguidas a fim de concluir o trabalho.

- Pai, quero ir também.
- Ah, não! Você não vai ficar doze horas trancada em um estúdio. É muito para uma menina da sua idade.
- Vou, sim.

E não fui. Mas sob protesto. No ano seguinte, ele gravou outro disco – que viria a ser o seu último – e começou tudo de novo: seleção de repertório, arranjos, estúdio... Eu observando e ajudando quando podia - só que não estava mais de férias, infelizmente. Mas, no lançamento, eu fui!!! A gravadora, a extinta Copacabana Discos, promoveu uma tarde de autógrafos na também extinta Mesbla (nossa, acho que estou ficando velha...), na rua do Passeio (Lapa, RJ). Cheguei correndo da escola, tomei banho, almoçamos e lá fomos nós dois. Meu pai estava apreensivo, pois há muito não participava de um evento assim. Ele não comentou nada. Apenas percebi. Creio que não tinha a verdadeira dimensão da força de seu trabalho e o que significava para aquelas muitas pessoas que foram prestigiá-lo. Foi um sucesso arrebatador! Quando olhava para o seu rosto, via que estava perplexo e não esperava toda aquela receptividade. E o disco ficou muito bonito, realmente.

Depois que meu irmão e eu crescemos, passamos a acompanhar nossos pais nas noites de reveillón. Em 1981, Waldir Calmon e seu conjunto estavam se apresentando na Churrascaria Roda-Viva, na Urca, RJ. Ao contrário do que o nome sugere, não era uma churrascaria com fumaça de gordura desafiando as nossas narinas, espetos passeando pelo salão, pessoas se empanturrando. Não, nada disto. Era um restaurante especializado em carnes, à la carte, colado à primeira estação do bondinho do Pão-de-Açúcar, pertinho da praia e rodeado de plantas e árvores – uma delas, frondosa, ficava dentro do restaurante. Havia até duas araras lindas, uma azul e outra vermelha, que faziam pose para fotos e, à noite, eram recolhidas para descansar. Algumas paredes não iam até o teto e a brisa do mar circulava livre e alegremente por toda a espaçosa casa. O teto sobre a pista de dança, em noites enluaradas, se abria para as estrelas. As caixas de som se concentravam na pista, tornando possível a conversa entre as pessoas que estavam nas mesas. Um luxo! A música ao vivo revezava com DJ. Do lado de fora, um amplo estacionamento ao ar livre onde podíamos ficar conversando sem medo. Este recanto da Urca era magnífico, um oásis dentro do Rio de Janeiro dos anos 70 e começo dos 80.

Nesta época, a música Festa do Interior (Moraes Moreira) era um dos hits do momento na voz de Gal Costa. Meu pai havia contratado uma nova cantora e pediu para que aprendesse a música, pois iriam tocá-la na noite de reveillón. Eu, muito fã da Gal, tinha a gravação e o ajudei, cantando sempre para guiá-lo enquanto escrevia o arranjo. Havia uma introdução com um belo naipe de sopros, ótima e com muitas notas, que deu um tremendo trabalho. Naquela época, ainda não existiam computadores e os arranjos eram feitos à mão: primeiro, se fazia uma grade (uma espécie de rascunho do arranjo para todos os instrumentos da banda ou orquestra) e, desta grade, se extraía cada partitura de cada instrumento, uma a uma, à mão. Era preciso ter paciência e tempo. E muito capricho para que os músicos pudessem entender o que estava escrito.

No dia 31 de dezembro, chegamos ao Roda (como era chamado pelos seus frequentadores) e esbarrei com a cantora no banheiro:

- E aí? Já aprendeu a música?
- Não muito.
Pausa dramática.
- Como assim? Meu pai teve um trabalhão para escrever! Como vai ser?
- Na hora, sai.

Não, não iria sair. Fui até meu pai, não para fazer fofoca ou algo do gênero, mas com medo de que a irresponsabilidade de uma pessoa pudesse comprometer o trabalho de todo um grupo.

- Pai, dá uma passadinha na música com ela.
- Não precisa, minha filha. Ela disse que está tudo bem e as voltas do arranjo estão iguais às da gravação. Não tem problema, não.
- Pai, vai por mim, dá uma passadinha.

E eles foram para um anexo da casa que estava desativado. Voltou furioso, falando coisas impublicáveis. A cantora não sabia nem por onde começar. Foi quando perguntei, brincando, na certeza de que ouviria um sonoro não:

- Você quer que eu cante?
- Quero

Coitado. Acho que a raiva foi tão forte que o privou dos sentidos. Ele não deve ter se dado conta do que falou.

- Quer mesmo?
- Quero.

E o baile começou. Quando ele me chamou, subi no palco como um bólido, antes que se arrependesse, peguei o microfone, esperei a introdução e comecei a cantar! Sabia a música de cor, de trás para frente, de frente para trás, em chinês, dinamarquês... Cantei! Sem técnica nenhuma. No tom da Gal. No peito e na raça! Se ficou bom, não sei. Só sei que me diverti pacas. E vi como era diferente cantar em casa e no palco: aqueles retornos de antigamente, barulhentos, uma banda com sopros, percussão, baixo, teclados (meu pai era praticamente uma ilha no meio de tantos teclados)... E também o barulho dos fregueses, da cozinha, dos garçons. Nossa, era muito diferente. Um choque. Estranho mesmo. Mas era muito bom!!! Eu estava deslumbrada, dançando, pulando e cantando, parecendo mais uma baiana em cima de um trio elétrico. E olha que nunca tinha visto uma baiana em cima de um trio elétrico. Depois que desci do palco, uma senhora me abraçou e disse, visivelmente emocionada:

- Parabéns, minha filha! Gostei de ver! Que personalidade! Foi lá, arrancou o microfone da cantora e cantou! Gostei!

Não foi bem assim, mas era festa e eu, em pleno estado de graça, só queria dançar e saborear aquele momento! Na manhã seguinte, estava acordando e ouvi meus pais conversando na cozinha:

- Marta, nunca vi ninguém tão cara-de-pau! Eu não esperava que ela subisse mesmo no palco.

Não só subi no palco como gostei. Difícil agora será sair dele.




Três gravações discoteque dos anos 70: as duas primeiras com Waldir Calmon e sua orquestra, e a última com a Banda Idade Média, do maestro Cipó. Danza de los Sabres (Katchaturian) e Macareña (B. B. Monterde - Calero) estão no disco Discotheque (Copacabana, 1979), de Waldir Calmon, e SWAT Theme (Barry De Vorzon) está no compacto simples da RCA, 1977. O belíssimo solo de Macareña é do trompetista Hamilton e o baixo em SWAT Theme é de Tranka Oliveira. Disco Discotheque, de Waldir Calmon (Copacabana, 1979):
  • arranjos: Pachequinho
  • teclados: Waldir Calmon
  • guitarra: Hélio Delmiro
  •  bateria: Picolé
  • trompete: Hamilton

www.waldircalmon.com
www.marciacalmonetranka.com

Um Pouco de Mim (3)

O que é Vocação?


Viver de música no Brasil é uma tarefa hercúlea. E não foi mais fácil para mim só porque nasci em uma família de músicos. Nada disto. Costumo dizer que não adianta ter talento se não há vocação, seja na música, na medicina, no comércio ou em qualquer outra área. E você só descobre se tem vocação depois que passa por certas coisas.

Cerca de dois anos após a morte de meu pai, em 1982, nossa família montou a Orquestra Waldir Calmon com alguns músicos que haviam trabalhado em seu conjunto. Ele raramente fazia bailes com a orquestra, usando esta formação, na maioria das vezes, em gravações de discos. Minha mãe, cantora quando solteira, ficou à frente do projeto e se tornou a, digamos, primeira bandleader do sexo feminino de que já ouvi falar.

Quando os homens veem uma mulher jovem, bonita e inexperiente comandando um negócio que pode gerar bons lucros, é complicado. E não foi diferente com minha mãe. Eram muitos palpites infelizes, propostas indecentes e oportunistas de plantão, mas, aos trancos e barrancos, conseguimos levar a pequena orquestra adiante.

No segundo semestre de 1984, estreei na banda como “estagiária”, com um repertório limitadíssimo e sem ganhar um tostão. Pouco tempo depois, comecei a receber um pequeno cachê. Éramos duas cantoras e meia – eu (que estava lá somente para aprender), minha mãe e uma outra, veterana, que vamos chamar aqui pelo fictício nome de Maria. Pois bem, o marido de Maria (vamos chamá-lo de João) se auto-intitulava empresário e, com sua lábia envolvente, convenceu minha mãe a dar-lhe exclusividade nas vendas de bailes. Hoje em dia, vejo como foi ingênua, pois ele não apresentou uma prova sequer, nem um simples recorte de jornal, que comprovasse a sua atuação como empresário.

Em novembro de 1984, perguntei à minha mãe se havia algum trabalho agendado para o dia doze de janeiro, sábado, pois eu queria comprar um ingresso para o primeiro Rock in Rio e, comprando com antecedência, tínhamos um ótimo desconto.

- Mãe, tem certeza de que não tem baile no dia doze de janeiro? É um sábado.
- Tenho. 
- Então vou comprar o ingresso. Tem mesmo certeza?
- Tenho. Pode comprar.

E lá fui eu, feliz da vida porque iria assistir, em um único dia, Al Jarreau, James Taylor, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Ivan Lins e George Benson - que havia gravado, há pouco tempo, Dinorá Dinorá (Lins – Martins). Eu estava em êxtase!
Lá pelo dia três de janeiro, João, o maior empresário do Brasil, marcou um baile para o dia doze de janeiro... Justamente no dia doze!!! Gelei. Ele e Maria foram lá em casa combinar os detalhes. Estranhei, pois não vi contrato, orçamentos para transporte, nada. Apenas uma data em uma folha de papel. Mas estagiária não pode dar opinião...

- Não vou. Já comprei meu ingresso para o Rock in Rio.
E João, o maior empresário do Brasil retrucou:
- Você tem  que ir!
- Mas não faço falta. Só canto umas três músicas.
-  Você é uma mulher bonita e fica bem à frente da orquestra.

Nesta altura, eu já não sabia se chorava ou pulava no pescoço dele. Mas tentei argumentar civilizadamente:

- Isto não faz a menor diferença para o trabalho. Além do mais, perguntei à minha mãe antes de comprar o ingresso.

Indiretamente, eu queria lembrá-lo de quem mandava realmente ali. Mas João, o maior empresário do Brasil, foi irredutível:

- Se você não for ao baile, sai da banda.

Olhei para minha mãe, afinal era ela que administrava aquilo tudo, e nada. Parecia não entender que, quando lhe perguntei se poderia comprar o ingresso, estava falando com a gestora e não com a mãe.

Quando os dois foram embora, já sem argumentos, resolvi apelar para seu lado materno. Quem sabe teria mais sorte?

- Mãe, eu perguntei antes de comprar e você concordou. Você não pode permitir isto. Sou sua filha.
- Márcia, você é um membro da orquestra como outro qualquer!

Desisti. Não havia mais como convencê-la. Trabalhar com família é difícil e as coisas frequentemente se confundem. Fiquei tão triste que nem quis vender o tíquete para o Rock in Rio. Quis me desfazer dele logo e dei para o meu irmão – mesmo sabendo que seria o único dia desinteressante para um roqueiro. Pop-jazz não era sua praia.

- Toma. Faz o que quiser com ele.
- Legal! Vou vender para recuperar uma parte do dinheiro que gastei.

E vendeu. Para o melhor amigo - e sem desconto. O telefone tocou. Era a vítima:

- Márcia, se era para dar o ingresso, por que não deu para mim ou vendeu por um preço menor? Eu já ia comprar mesmo. 
- Poxa, desculpe. Fiquei com pena do Marcus. Ele gastou muito dinheiro comprando tantos ingressos... Sabe como é, né? Irmão...  

Minha nossa! Aquilo estava parecendo um filme de terror daqueles bem ruins do Ed Wood!

Chegou o dia doze! Não havia transporte especial para os músicos e João, o maior empresário do Brasil, comprou passagens em ônibus de carreira para toda a banda. O trabalho era em Rio Bonito, cidade que fica a cerca de apenas 70 km do centro do Rio de Janeiro. Nunca entendi por que não deram o dinheiro da gasolina para que os próprios músicos se dividissem em alguns carros, pois não era tão longe assim. Mas estagiária não dá opinião...

O baile começou. Casa vazia!!! Como os próprios músicos dizem, tocamos para a família Madeira: mesas e cadeiras - o trabalho havia sido fechado com pouquíssima antecedência e não houve tempo para fazer a divulgação. Mesmo assim, a orquestra se apresentou normalmente e foi um alívio quando acabou, pois nada pior do que tocar para ninguém ou quase ninguém. E eu só lembrava de que poderia estar me divertindo muito, naquele exato momento, com meus amigos em um inesquecível show...

Quando acabou, João, o maior empresário do Brasil, recebeu um cheque da contratante. Músicos não gostavam desta forma de pagamento, pois geralmente só recebiam seus cachês depois da compensação do cheque. Também não houve, como é de praxe, 50% de adiantamento que, em caso de calote, cobririam despesas básicas, como transporte, som, alimentação etc... Para completar, só haveria ônibus, na pequena rodoviária de Rio Bonito, umas três horas depois. Ficamos vagando pela cidade, em uma desagradável e quente madrugada de verão, sem rumo, e não achamos um lugarzinho sequer para sentar e tomar uma água. Tudo fechado. Chegando ao Rio, pegamos um taxi e o motorista, todo animado, começou:

- Souberam do Rock in Rio ontem?
- O que aconteceu, moço? 
- Foi uma loucura! Os shows arrebentaram! Na hora do James Taylor, cantaram e acenderam os isqueiros. Foi lindo! George Benson e Ivan Lins cantaram juntos! Todo mundo só fala disto!

Senti uma lágrima escorrendo, discreta, pelo meu rosto. Assim que cheguei em casa, liguei para meu amigo (a vítima que comprou o ingresso de meu irmão, sem desconto):

- E aí? Como foi? 
- Maravilhoso! Só faltou você!

E começou a contar. Liguei para outro amigo, do meu grupo da antiga escola:

- E aí? Como foi?
- Maravilhoso! Só faltou você!

Todo mundo que eu conhecia, com exceção de meu irmão, foi ao festival no dia doze! Nunca imaginei que pudessem caber tantos sentimentos distintos e confusos, ao mesmo tempo, dentro de uma quase cantora. Depois do prejuízo material, de não conseguir assistir a meus ídolos em uma oportunidade única, de levar uma bronca do amigo, de tocar para uma casa vazia, de vagar por uma cidade deserta, o que mais poderia me acontecer?

- O cheque não tem fundos.
- O quê???!!! Como não tem fundos???!!! E o contrato? Quando você fechou o trabalho não tomou precauções?

Não. João, o maior empresário do Brasil, não pediu nenhuma garantia e ficou por isto mesmo. Minha mãe pagou os músicos com o dinheiro do suado capital de giro da orquestra.

- Mãe, quero o meu cachê.

Eu ganhava pouco, mas era meu e já ajudaria a minimizar o meu prejuízo material, ora.

- Como? Você vai me cobrar? Você é minha filha! 
- Ué? Eu não sou um membro da orquestra como outro qualquer?
- Que absurdo! A Maria e o João não me cobraram!
- Mas é claro! Ele foi o irresponsável por isto tudo! E ela é mulher dele! Eles até deveriam ajudar a orquestra a pagar os músicos!

E não recebi. Foi o único trabalho que João, o maior picareta do Brasil, fechou. ÚNICO!

É. Acho que vocação é quando a profissão que você escolheu mostra logo o seu lado mais sombrio e, mesmo assim, você continua a amá-la...



No vídeo, uma das músicas que eu cantava na Orquestra Waldir Calmon na época do baile em Rio Bonito: Nada Mais (Stevie Wonder - Ronaldo Bastos). Infelizmente, não tenho nenhum registro gravado, mas os deixo com a maravilhosa voz de Gal Costa, ao vivo, no ano 2000.

Um Pouco de Mim (4)

Tentando Relaxar


Depois da malfadada aventura em Rio Bonito, fiquei tão indignada que resolvi ir ao Rock in Rio de qualquer jeito, em qualquer dia, com qualquer atração. Eu queria esquecer toda a frustração do dia doze e, afinal, um evento daquele, histórico, acontecendo bem pertinho e eu não participar, seria um absurdo! E fui no último dia.

Era um domingo nublado em janeiro de 1985. A orquestra havia trabalhado durante o fim-de-semana todo e, desta vez, sem levar calote! Estava praticamente sem dormir, mas o dinheirinho dos cachês do fim-de-semana me ajudou a comprar o ingresso. O baile em Itaboraí entrou como perdas e danos mesmo e tive de conviver com isto. Vida que segue.

O problema é que, depois do maravilhoso dia doze, choveu. E muito! Verão no Rio de Janeiro sempre é chuvoso, com tempestades rápidas e bem intensas, que normalmente causam grandes alagamentos. A Cidade do Rock, onde as pessoas caminhavam sem problemas e se sentavam confortavelmente em qualquer lugar do agradável gramado, se transformou em um lamaçal, pois a grama havia sido plantada pouco tempo antes do início do festival e não houve tempo para criar raízes profundas. Pelo menos, foi isto que li na imprensa. O fato é que, quando as pessoas pisavam, remexiam a terra molhada, com grama e tudo mais que estava em cima.

Separei umas galochas compactas e blindadas de plástico, com salto grosso, bem seguras, que protegiam meus pés e iam até a metade de minhas canelas. Eram um “bloco” de plástico muito duro, sem costuras ou cola. Com elas, tinha a nítida sensação de que poderia atravessar um dilúvio de proporções bíblicas. Meu irmão olhou e disse:

- Não vai assim, não. Vai com aquelas sapatilhas ali.

E apontou para as minhas delicadas e confortáveis sapatilhas de couro, exatamente igual as que estão na moda hoje em dia, que deixam a parte superior do pé à mostra e podem ser retiradas com facilidade.

- Mas, Marcus, estão dizendo que tem muita lama. As botas me protegerão mais. 
- Vai por mim. Fui todos os dias e sei o que estou falando.

Contra este argumento, o que pensar? Troquei minhas poderosas galochas pelas fofas sapatilhas, vesti uma calça jeans e lá fui eu com a turma. Quando cheguei, me assustei com a grandiosidade do evento: muitos guichês (desta vez, comprei na hora), muita gente, muitos portões, muitas lojas, palco imenso... Uma loucura. E também a lama e o mau cheiro. Quando andava, minhas frágeis sapatilhas grudavam na lama e, lógico, saíam do pé, fazendo com que eu pisasse, até me atolar, naquele misto de grama, terra, água, comida e sei-lá-mais-o-quê. Meus dedos, agora fétidos também, mergulhavam até que minhas pegadas ficassem marcadas naquela mistura indescritível. Isto aconteceu dezenas de vezes até que alguém teve a ideia de envolver nossos tão nojentos pés em sacos de lixo. Não sei onde conseguiram aqueles sacos e, francamente, prefiro não saber, mas deram uma pequena ajuda. O problema agora era como parar de escorregar e cair sentada no chão de cinco em cinco minutos. Plástico em cima de uma superfície molhada nem sempre é uma boa ideia, mas era o que tínhamos para o momento... Mesmo imunda, eu evitava sentar até porque todos os lugares razoáveis já estavam ocupados. Só consegui sentar uns dez minutinhos, porém começou a chover e tivemos de sair. Não foi uma grande chuva – o suficiente para eu me levantar e alguém pegar o meu lugar. Fiquei em pé cerca de oito horas seguidas, tentando caminhar, com dificuldade, na lama grudenta ou escorregadia. Por alguma razão, lembrei-me do Monstro da Lagoa Negra e seu caminhar arrastado...

Banheiro, nem pensar: as filas eram imensas e estavam tão sujos que desistíamos. Comer ou beber também era difícil, pois, sendo o último dia, as lanchonetes não estavam mais renovando os estoques. Nestas alturas, meu irmão já estava com outro grupo de amigos e bem longe de mim. Melhor para ele.

Não conseguimos chegar para o primeiro show, pois resolvemos tudo em cima da hora, meio que no improviso. Pegamos um ônibus perto da nossa rua, em Copacabana, e paramos quase na entrada do festival, na Barra da Tijuca. Eram linhas especiais com tarifa normal, que funcionaram apenas para o evento, com muitos ônibus, daqueles comuns mesmo, quentões, sem luxo algum, porém muito eficientes e rápidos.

Comprei meu ingresso rapidamente em um dos vários guichês à disposição e, assim que entrei, tive uma visão impactante daquele admirável mundo novo: gente por todo lado, andando para lá e para cá, com Erasmo Carlos acabando sua apresentação no palco incrivelmente alto e onde se poderia jogar uma partida de futebol sem problemas. Não havia telões e, para conseguir ver bem os artistas, só na turma do gargarejo ou com binóculos. Optei pelo gargarejo e assisti à Blitz, The B-52's e Nina Hagen com uma boa visão. Todo mundo espremido e em pé, claro. De vez em quando, algum amigo me levantava para que eu pudesse enxergar melhor.

Na verdade, não era o dia de Eramos Carlos, porém, depois de ser hostilizado e vaiado pelo público em sua primeira apresentação, decidiu trocar a data do segundo show. Houve alguns equívocos na distribuição das atrações durante o festival e tivemos outros casos como o de nosso querido Tremendão. Seja por qual motivo for, nunca se justifica o desrespeito a um artista sério, gostando ou não de seu trabalho. Respeito é bom e todos gostamos.

Quando o último show começou, respirei aliviada, pois estava imunda, com fome, sede, cansaço, vontade de ir ao banheiro e com uma tremenda dor na lombar por ficar em pé tantas horas seguidas. Só que o último show durou duas horas!!!! Sério. Nunca imaginei que desejaria tanto ver o fim de um show do fantástico Yes, mas desejei. A esta altura, eu já estava longe do palco, tentando sentar ou me escorar em algum lugar, alguém ou alguma coisa. Apesar de longe, consegui vê-los e ouvi-los muito bem.

Para quem não teve a sorte de conhecer, o Yes é uma banda britânica de rock progressivo e a formação que tocou aqui no Rio foi: Jon Anderson (vocal), Tony Kaye (teclados), Chris Squire (baixo), Alan White (bateria) e Trevor Rabin (guitarra). Todos são excelentes músicos e seu trabalho é de altíssimo nível. A apresentação ainda contava com um belo e modernoso aparato de raios laser. Tudo da melhor qualidade. Mas eu estava morta! Morta com farofa! E não consegui curtir, como deveria e desejava, o show deles. Uma pena. Contudo, ainda me lembro daqueles inacreditáveis raios laser verdes, rasgando o céu noturno, cintilando na noite nublada e escura. Quase uma miragem.

O Rock in Rio acabou com um show pirotécnico e, após os fogos, não consegui correr para pegar logo o ônibus, tal o estado lastimável em que me encontrava. Mas foi bom, porque minha lentidão permitiu que a multidão fosse embora logo, lotando os ônibus. Depois de andarmos uma légua até o ponto (quando estamos cansados, tudo parece mais distante), finalmente sentei!!! Nunca achei tão fantástico pegar um ônibus!!! Consegui vir sentada, sozinha, com um banco para chamar de meu, e cheguei a desejar que a viagem de volta demorasse uns três dias só para curtir, até o fim, aquele banquinho (que estava limpo até eu me sentar nele).

Quando cheguei em casa, joguei as sapatilhas fora (ai, ai, elas eram tão confortáveis...), tomei um banho dos pés à cabeça (caprichei nos pés), desinfetei todos os meus dedinhos com álcool, comi algumas coisas e fui para a cama – afinal, estava praticamente sem dormir há quase 48 horas. O pior é que a sensação de sujeira não saía por nada, por mais banhos que eu tomasse. Parecia que eu só conseguiria me limpar totalmente se ficasse mergulhada na água sanitária. Até para uma pessoa com 21 anos, aquilo foi demais. Apesar de o Rock in Rio ter sido um evento incrível, minha experiência em festivais de rock começou e acabou ali.





Alguns dos shows a que tentei assistir no Rock'n'Rio 1985. De cima para baixo: James Taylor com You've Got a Friend (Carole King) e George Benson com Inside Love (Jones).

Um Pouco de Mim (5)

Tentando Viver de Música


No final dos anos 80, saí do apartamento em que vivi com meus pais para morar sozinha. Bancar uma casa, por menor que seja, é uma árdua tarefa e apenas cantar em orquestra não me permitiria esta nova empreitada, pois é um tipo de trabalho muito sazonal, inconstante e eu precisaria ter uma renda mais estável. No entanto, não poderia ter um emprego noturno por causa de minha Faculdade à noite. Sim, nos anos 80 e 90, a noite do Rio de Janeiro ainda possuía uma enorme variedade de boates, bares, restaurantes... Muitos com música ao vivo e músicos contratados com carteira assinada. Eram empregos formais e, ganhando bem ou não, o músico profissional tinha um salário e os benefícios da lei.

É curioso pensar nisto. Quando comparo o mercado de trabalho daquela época com o atual, sinto muita tristeza e lamento por todos nós que vivemos de música. A violência nas cidades e o desenvolvimento da tecnologia talvez tenham sido os maiores responsáveis pela quase extinção dos postos de trabalho. Um DJ, sozinho, faz a festa e cobra às vezes quase o mesmo cachê que uma banda de pequeno ou médio porte. As orquestras, coitadas, não têm a menor chance de competir por causa de seu gigantismo. Pense no custo de passagens, alimentação, hospedagem e cachê para uma banda com vinte e cinco, trinta, ou até mais, pessoas. Quando vemos um grupo no palco, tenha a certeza de que há um outro nos bastidores, trabalhando firme para que o show aconteça: são os roadies, camareiros, motoristas, técnicos de som, de luz... É um verdadeiro exército que não aparece, mas existe e entra na planilha de cálculo dos custos de uma banda.

Moro no Rio de Janeiro e é o mercado que melhor conheço.  Não tenho notícias de casas que, hoje em dia, empreguem músicos como no passado: são trabalhos de, no máximo, uma ou duas vezes por semana, por um cachê ou couvert (muitas casas ainda pedem um percentual sobre o couvert). A violência urbana prejudica o músico, direta e indiretamente, quando afasta os frequentadores da noite e ainda o expõe aos constantes assaltos. O mercado está praticamente restrito a gigs1, acompanhamento em shows de artistas e musicais – no entanto, devido à crise pela qual passa o país, os orçamentos das produções estão mais enxutos.

Voltando ao final dos anos 80, por causa de meu novo projeto de vida e da impossibilidade de trabalhar à noite, decidi procurar um emprego diurno mesmo. Como ainda não havia concluído meu curso superior, não tinha muitas opções e acabei trabalhando como secretária em expediente integral, saindo da empresa direto para a Faculdade e, nos fins-de-semana, estudando, fazendo supermercado e cuidando da casa.     
  
Era cansativo, mas, pior do que isto, era chato! Eu detestava aquele tipo de trabalho!!! Minha alma musical reclamava o tempo todo, porém era sempre soterrada pelas contas do mês... Mas eu tinha de extravasar a minha musicalidade de alguma forma e voltei às aulas de canto no único horário em que podia - às 6:30h da manhã, meu professor e eu abríamos o Conservatório, três vezes por semana. Nestes dias, acordava às 5:30h da manhã e, é claro, estava sempre com sono, não rendendo nada. Não aguentei e tive de parar com estas aulas.

Fui levando e, finalmente em 1990, consegui um excelente emprego em uma multinacional, ainda como secretária, no departamento que cuidava de patrocínio a eventos culturais. Já havia me conformado com a ideia de abandonar a música, concluir meu curso de Jornalismo e fazer carreira na empresa em que estava, mas o destino tinha outros planos.

Comecei na empresa no mesmo dia em que o ex-Presidente Fernando Collor de Mello assumiu. Fui a última contratação antes que o novo plano econômico fosse anunciado, dias depois, pela então Ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. O “Plano Collor”, na realidade, poderia ser resumido em apenas três palavras: confisco da poupança. E de todos os brasileiros, pessoas físicas e jurídicas! Foi um quebra-quebra geral de várias empresas – principalmente as menores. A minha era grande, com sede nos EUA, e mesmo assim foi atingida o suficiente para demitir 20% de seu quadro de funcionários e congelar, pelo menos até segunda ordem, todos os projetos e patrocínios. É claro que eu estava na lista. Antes de demitir, a empresa ainda esperou uns três meses para ver se o país reagia, mas não deu. Com o Brasil parado, ficava difícil arranjar outro emprego e acabei voltando para a orquestra de minha família. Porém alguma coisa em mim havia mudado.

Eu queria cantar, sempre quis, no entanto os bailes já não estavam mais me satisfazendo profissionalmente: eram os mesmos lugares, o mesmo repertório, os mesmos arranjos... Eu estava querendo conhecer outras formas de ver e viver a música. Acabei por sair da nossa banda e passei por outras orquestras, fiz algumas apresentações em casas noturnas e me dediquei a fazer uma fita demo para enviar às gravadoras e a estúdios de jingles.

Naquela época, a internet ainda estava engatinhando no mundo e, no Brasil, mal se falava disto. Nossa moeda ainda era o combalido e desvalorizado Cruzeiro e um computador custava uma fortuna! Só víamos estas máquinas maravilhosas em empresas.

A forma mais comum de mostrar um trabalho era gravando uma fita K7 demo, com umas três músicas, e mandando para gravadoras e produtores. Havia o custo do estúdio e dos músicos, mas tive a imensa sorte de, nesta busca por novos caminhos, conhecer o tecladista da cantora Rosana “Como uma Deusa”, o Wagner, que era um dos poucos músicos que possuíam em casa um equipamento que poderia ser usado em gravações também.

Wagner era antenado, me deu umas dicas ótimas e se ofereceu para gravar duas músicas. Ainda tivemos o auxílio luxuosíssimo do baterista de nosso querido “Tremendão” Erasmo Carlos - o Carlos Jorge. Ele foi o primeiro a tocar uma bateria eletrônica, novinha em folha, na minha frente. Fiquei maluca. Era muita novidade de uma vez só.

Hoje em dia, ninguém mais faz fitas demo para enviar às gravadoras. A internet mudou dramaticamente a relação do músico com o mercado e qualquer pessoa pode ter um razoável home studio com pouco investimento, fazer suas gravações em casa, postar na internet, vender seu trabalho em plataforma digital e até fazer CDs para vender em apresentações. Há vários sites gratuitos onde artistas desconhecidos podem mostrar seu trabalho, fazendo um perfil com currículo, fotos, agenda e suas músicas. O problema é que, se por um lado a internet democratizou e barateou a produção musical, por outro, aumentou demais o número de aspirantes à fama e separar o joio do trigo se tornou uma tarefa hercúlea. São milhões de artistas, por todo o mundo, a tentar um lugar ao sol. Alguns, ótimos. Outros, nem tanto... Voltando aos 90, com minha fita demo em punho, fui à luta. No próximo post, conto o desfecho surpreendente desta cruzada.

1 Gig é um termo usado por músicos para indicar uma apresentação (normalmente de pop, rock ou jazz) que não tem a pretensão de ser um show ou baile. Por exemplo, quando você vê aquele rapaz ou dupla tocando em um restaurante ou barzinho por umas três, quatro horas e com alguns intervalos, é uma gig.



Neste vídeo, uma linda música de nosso Tremendão: Minha Superstar (Roberto - Erasmo), ao vivo. 


Um Pouco de Mim (6)

Descobrindo Novos Caminhos


Com a minha demo nas mãos, fui à luta! Infelizmente, as gravadoras só queriam lançar alguém que tivesse um repertório inédito. Dificilmente um intérprete, por melhor que fosse, iria conseguir uma chance sem novas canções. Fui a duas grandes gravadoras e ouvi a mesma coisa. Em uma delas, pediram muito para que eu procurasse algum compositor e lhe pedisse material, pois este seria o único empecilho. Porém, os bons compositores queriam gravar suas próprias músicas ou dá-las a artistas consagrados que tivessem uma boa vendagem garantida. E eu era uma ilustre desconhecida...

Mas estava determinada e não desisti. Depois de algum tempo recebendo salário regularmente e vivendo de forma econômica, havia poupado algum dinheiro (é verdade que boa parte dele o Collor pegou) que, junto com meus trabalhos na noite, me permitiam pagar as contas.     

Um fotógrafo, que conheci quando era modelo e se tornou um grande amigo, apresentou-me o responsável pelo marketing das lojas Ponto Frio. Ele, gentilmente, me deu os endereços das produtoras de jingle com as quais trabalhava e o seu cartão. Com esta apresentação, consegui ser recebida em alguns lugares ao invés de somente deixar meu material e ir embora.

Foi uma verdadeira peregrinação por estúdios até chegar em um famoso, no bairro do Flamengo (RJ), onde estava acontecendo uma gravação naquele exato momento. O proprietário estava na técnica e lá mesmo me recebeu. Além dele, estavam lá as duas cantoras que gravavam, o técnico de som e um homem bem moreno com uma calça jeans surrada, uma t-shirt azul marinho furada e fumando sem parar. Ele me olhava fixamente a ponto de me deixar encabulada. Em um determinado momento, me disse:

- Vai lá e entra no coro!

Fiquei intrigada, pois não sabia quem ele era e por que estava dando as ordens na frente do dono do estúdio. Mas, como sou muito bem mandada, coloquei os fones e cantei. Acabou a gravação e o homem moreno não falou nada. Apenas continuava me olhando e fumando.  Eu ODEIO cigarro! Ele não se apresentou e, através das conversas durante a gravação, soube que era conhecido como “Tranka”. Fiquei me perguntando, então, quem usaria um apelido assim... Meio confusa com aquilo tudo, deixei o material e fui embora.

Dias depois, cheguei em casa e havia um recado em minha secretária eletrônica – em 1992, celular ainda estava chegando ao Brasil e pouquíssimos podiam pagar por esta comodidade. Na mensagem, Tranka me convidava para cantar com seu grupo em um evento para turistas franceses. O cachê era excepcionalmente bom e, claro, irrecusável. Eu, acostumada a tocar somente para brasileiros, aceitei o desafio apesar de saber que o repertório seria bem diferente do que estava habituada a cantar. Ele, porém, já havia tocado em vários países, conhecia muito bem as preferências musicais dos franceses e me orientou. No final, foi um grande sucesso!!! A partir daí, não paramos mais de trabalhar juntos e me sentia duplamente recompensada: através dos gordos cachês que ele pagava aos seus colaboradores e também pelos novos caminhos que eu estava trilhando na música – tudo que  estava procurando há tempos!

Tranka também era arranjador, diretor musical e criava os espetáculos do Plataforma, que ficava no elegante bairro do Leblon, RJ, e cujo show misturava folclore brasileiro e glamour: paetês, plumas, cores, ritmos e orquestra ao vivo. As fantasias eram enormes, deslumbrantes e tudo muito ensaiado, banda e bailarinos. Tudo era grandioso e, durante as apresentações, havia dezenas de pessoas em cena e outras tantas nos bastidores. No andar térreo, existia a famosa churrascaria onde Tom Jobim passava quase todas as suas tardes e frequentemente conversava com Tranka.  Em 1993, decidiram abrir uma filial em San Juan de Puerto Rico e montaram um elenco brasileiro para morar na ilha caribenha por um ano. Ao todo, cerca de 70 profissionais, (entre músicos, cantores, bailarinos, costureiras, contrarregras, capoeiristas, ritmistas e coordenadores) estavam envolvidos no projeto. Tranka, responsável pela parte musical, me convidou para integrar a banda e confesso ter ficado bastante insegura, pois seria minha primeira viagem internacional a trabalho e longa, muito longa. Mas a oferta era ótima! E lá fomos nós! Com a convivência diária, acabamos nos envolvendo sentimentalmente e, com o fim do contrato em Porto Rico, seguimos para a paradisíaca Saint Martin, também no Caribe. Um amigo dele morava na ilha e lá fomos nós de novo! Só que, desta vez, apenas os dois. E aí começou outro desafio: eu, acostumada a cantar em grandes grupos e em palcos altos e espaçosos, deveria aprender a me apresentar apenas em dupla, domando a voz e dividindo o limitado espaço com o público.

Em Saint Martin, tocamos em hotéis luxuosos e restaurantes sofisticados. Tudo bem suave, junto aos clientes. Os espaços eram menores e não havia condições de realizar grandes shows. Foi difícil me adaptar, muito difícil, mas também descobri outra forma de fazer música e adorei! Estes desafios só enriqueciam minha experiência profissional. Também tive de aprimorar os outros idiomas em que já cantava (inglês, espanhol, francês e italiano), pois turistas do mundo inteiro passavam por lá e não tocávamos somente música brasileira. Nosso imenso repertório ia da bossa-nova ao tango, passando pela valsa francesa, o jazz norte-americano, o cha cha cha latino e a balada italiana - sem esquecer os ritmos caribenhos, como salsa e zouk, e tudo mais que conseguisse se fundir perfeitamente com aquele belíssimo cenário.

Tranka também começou a dar aulas de música e assim seguimos por alguns anos até decidirmos voltar ao Brasil. Saint Martin era um lugar incrível, porém não há perspectivas de novos horizontes em uma pequena ilha. Nós iríamos sempre trabalhar muito, mas fazendo a mesma coisa.
Voltamos e foi difícil nos readaptarmos aqui, pois o Brasil tinha acabado de passar pelo plano Real e parecia outro país. Muito melhor, claro, mas totalmente diferente. Tudo estava mudado – a começar por mim.

Através do Tranka, comecei a fazer backing-vocal para a cantora Marlene (ele era o seu maestro oficial há décadas) e aprendi muito com ela. Grande artista que era, bastava observá-la em cena para adquirir um excelente aprendizado. Comecei também a fazer coros em discos, participar da criação de shows, produzir grande trabalhos, gravei um CD solo... Enfim, consegui trilhar novos e diferentes caminhos na música como eu desejava há anos! Ah, e ainda estudei demais: fiz cursos de canto lírico e popular, em Saint Martin e no Rio.

Espero ter conseguido mostrar a vocês pelo menos um pouco de minha trajetória musical desde a infância. A música, para mim, nunca foi uma opção de vida. A música, para mim, sempre foi a própria vida.




Faixa de nosso CD Tranka & Marcia - Sob Medida: Samba do Avião (Jobim) - Corcovado (Jobim) - Copacabana (Braguinha e Ribeiro)